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Blefarites refratárias ao tratamento convencional: papel do Demodex

Treatment-resistant blepharitis: the role of Demodex

Ruth Miyuki Santo1; Fernando Eiji Sakassegawa-Naves2; Richard Yudi Hida3

DOI: 10.17545/e-oftalmo.cbo/2016.54

RESUMO

Blefarite é uma das condições mais frequentes nos consultórios oftalmológicos. Representam um espectro de doenças caracterizadas por graus variados de inflamação palpebral e os sintomas predominantes incluem prurido, sensação de queimação e desconforto ocular. Embora muito comum, permanece como uma condição não completamente definida e seus mecanismos fisiopatológicos requerem total elucidação. As blefarites constituem um desafio diagnóstico e terapêutico. Distinções entre as diferentes manifestações clínicas podem ser sutis ou sobrepostas e podem ter impacto relevante no tratamento. Até o presente momento não há uma classificação universal. Embora a condição, na maioria das vezes, não seja de risco para a visão, as queixas de irritação ocular e desconforto aos esforços visuais podem ser tão persistentes que podem ter repercussão relevante na qualidade de vida. Alguns casos refratários ao tratamento convencional podem ter a participação do ácaro Demodex. A presente revisão tem como objetivos discutir o papel do Demodex como agente associado às blefarites crônicas, a fisiopatogênese da condição, o diagnóstico e tratamento.

Palavras-chave: Blefarite: Olho; Inflamação: Ácaros: Qualidade de Vida.

ABSTRACT

Blepharitis is one of the most common conditions seen in ophthalmological practice. The term represents a spectrum of diseases characterized by varying degrees of eyelid inflammation, and the predominant symptoms include itching, a burning sensation, and ocular discomfort. Though very common, blepharitis is not completely defined, and its exact physiopathological mechanisms are not yet established. Blepharitis offers a diagnostic and therapeutic challenge. Distinctions between different clinical manifestations may be subtle or may overlap and may have a relevant impact on treatment. Moreover, a universal classification system for blepharitis remains unavailable. Although the condition does not typically create risks for patients’ vision, complaints of occular irritation and discomfort may be so persistent that they may have a relevant impact on quality of life. Mites from the genus Demodex are thought to be involved in some blepharitis cases resistant to conventional treatment. The objective of this review is to discuss the role of Demodex mites as agents associated with chronic blepharitis, as well as the physiopathological mechanisms underlying the condition, its diagnosis, and its treatment.

Keywords: Blefarite: Olho: Inflamação: Ácaros: Qualidade de Vida.

INTRODUÇÃO

As blefarites crônicas são comumente observadas nos consultórios oftalmológicos. Representam um espectro de doenças caracterizadas por graus variados de inflamação palpebral e os sintomas predominantes incluem prurido, sensação de queimação e desconforto ocular. As blefarites constituem um desafio diagnóstico e terapêutico. Distinções entre as diferentes manifestações clínicas podem ser sutis ou sobrepostas e podem ter impacto relevante no tratamento. Até o presente momento não há uma classificação universal. Muitas vezes essas condições são negligenciadas não só pelo paciente, mas também pelos oftalmologistas, e podem ser motivo de grande insatisfação. Em alguns casos, a queixa de irritação ocular e desconforto aos esforços visuais é tão persistente que pode ter repercussão na qualidade de vida, apesar do tratamento para blefarite e olho seco. Uma causa a ser lembrada é a blefarite provocada por um ácaro chamado Demodex (Foto 1).

 


Foto 1: O Demodex folliculorum (ácaro = “mite” em inglês) apresenta um corpo alongado semitransparente. O adulto tem quatro pares de pernas curtas ligadas ao primeiro segmento do corpo, que é coberto de escamas que facilitam a adesão ao folículo piloso. Eles se alimentam de células descamadas da pele e gordura (sebo) das glândulas sebáceas.

 

Demodex e Blefarites

O Demodex (do grego dēmos = gordura + dēx = verme) é um ectoparasita microscópico da classe Arachnida e da subclasse Acarina que coloniza as unidades pilosebáceas. Na realidade, é o parasita permanente mais comum nos humanos.1 Entre as várias espécies, apenas duas estão descritas na superfície do corpo humano: Demodex folliculorum e Demodex brevis. Os ácaros adultos têm entre 0,3 e 0,4 milímetros de comprimento, sendo o D. brevis um pouco menor do que o D. folliculorum.2 Os Demodex tendem a se reunir no rosto, bochechas, testa, nariz e trato auditivo externo, onde a excreção de sebo ativo fornece alimento e um habitat favorável para a reprodução. Como o olho está rodeado por essas estruturas, as pálpebras podem ser facilmente colonizadas por estes agentes. Pessoas idosas, bem como indivíduos com rosácea, são muito mais propensos a portar estes ácaros. No olho, o Demodex folliculorum é encontrado na porção infundibular do folículo piloso do cílio e o Demodex brevis nos ductos das glândulas sebáceas dos supercílios e das glândulas meibomianas.3 Contagens reduzidas de Demodex podem ser encontradas em indivíduos sem sintomas.4 Na grande maioria dos casos, os ácaros podem passar despercebidos, sem sintomas adversos, mas em certas situações (geralmente relacionada a um estado de imunossupressão, causada por estresse ou doença) as populações do ácaro podem aumentar drasticamente, resultando em uma condição conhecida como demodecose, caracterizada por prurido e inflamação.

O Demodex foi identificado há mais de 150 anos (em 1842 por Simon) mas o seu papel no desenvolvimento da blefarite crônica tem sido alvo de interesse recente e estimulou inúmeras pesquisas, sobretudo nos últimos 10 anos. Rodriguez e cols. 5 verificaram que 75% dos pacientes com blefarite crônica apresentavam Demodex nos cílios e em número muito maior que os indivíduos normais. A relação entre blefarite e infestação por esses agentes foi confirmada por outros autores6,7 e uma metanálise recente mostrou que a probabilidade de risco que um paciente com Demodex nos cílios tem para desenvolver blefarite sintomática é 4,7 vezes maior.8 A melhora do quadro clínico com tratamentos que reduzem o número de Demodex também corrobora a existência de uma relação clara entre o desenvolvimento de blefarite e infestação por Demodex.9

A blefarite causada pelo Demodex pode ser tanto anterior (região dos cílios) como posterior (glândulas meibomianas). A fisiopatogênese do processo inflamatório ocorre por ação direta do ácaro, por ação de bactérias (o ácaro funciona como vetor) ou por reação de hipersensibilidade. Os ácaros causam distensão dos folículos, microabrasões da pele ao redor dos folículos pela ação de suas escamas e obstrução dos orifícios das glândulas meibomianas. Podem ser causa de calázio recorrente e olho seco evaporativo. Os ácaros também funcionam como vetores, carreando bactérias na sua superfície, dentre elas estreptococos e estafilococos. Antígenos produzidos por essas bactérias podem causar uma reação de hipersensibilidade do tipo antígeno-anticorpo com o desenvolvimento de infiltrados estéreis na periferia da córnea (úlcera catarral) ou de ceratoconjuntivite flictenular, sobretudo nos pacientes com rosácea. As proteínas do esqueleto dos ácaros e seus dejetos podem induzir o aparecimento de hipersensibilidade tardia com recrutamento de linfócitos T e liberação de citocinas.10,11

Diagnóstico da blefarite associada à presença do Demodex

O diagnóstico da blefarite associada ao Demodex baseia-se em 3 critérios: (1) História clínica: blefarite, blefaroceratoconjuntivite ou calázio recorrente refratários ao tratamento convencional; (2) Exame à lâmpada de fenda: presença de “caspas" cilíndricas na raiz dos cílios (Foto 2); (3) Exame de cílios epilados à microscopia óptica: detecção de larvas ou ácaros adultos (Foto 3).

 


Foto 2: Presença de “caspas” cilíndricas associadas a processo inflamatório na raiz dos cílios representam um forte indício de blefarite por Demodex.

 

 


Foto 3: Presença de vários ácaros adultos e ninfas (mais longas que os adultos) em um cílio epilado e examinado ao microscópio óptico de luz.

 

Tratamento da blefarite associada à presença do Demodex

O Demodex é resistente a uma variedade de soluções antissépticas comuns, incluindo o álcool 70% e a iodopovidona 10%, bem como a agentes antimicrobianos, como a eritromicina e metronidazol. A literatura tem demonstrado que o uso de óleo de melaleuca (tea tree oil) na higiene palpebral é um tratamento efetivo e seguro na blefarite por Demodex 12 e apresenta vantagens sobre o uso do shampoo neutro, pois remove não só as “caspas” externas, mas também estimula a migração dos ácaros de dentro dos folículos para a superfície cutânea. Além da erradicação do Demodex, o tratamento com o óleo de melaleuca promove um alívio dramático nos sintomas de irritação ocular e a resolução da inflamação palpebral.13 O óleo de melaleuca é um óleo natural extraído da folha da planta Melaleuca alternifolia que tem efeito antibactericida, antifúngico e anti-inflamatório14 e, por isso, oferece vantagens no tratamento das blefarites de um modo geral.

Em estudo recente, Holzchuh e cols. demonstraram que o uso de ivermectina sistêmica pode ser muito útil como um complemento para o tratamento de infestação de Demodex, especialmente nos casos de insucesso relacionados com a falta de adesão do paciente à higiene palpebral. Neste estudo observou-se uma redução substancial do número de ácaros encontrados nos cílios, além da melhora estatisticamente significativa dos parâmetros clínicos como tempo de ruptura do filme lacrimal e coloração da superfície ocular. O tratamento foi realizado com dose única de ivermectina oral (200µg/kg, comprimidos de 6 mg) repetida após uma semana.

 

CONCLUSÕES

As blefarites constituem um desafio diagnóstico e terapêutico. Alguns casos refratários ao tratamento convencional podem ter a participação do ácaro Demodex. A blefarite causada pelo Demodex pode ser tanto anterior (região dos cílios) como posterior (glândulas meibomianas). A fisiopatogênese do processo inflamatório ocorre por ação direta do ácaro, por ação de bactérias (o ácaro funciona como vetor) ou por reação de hipersensibilidade. O diagnóstico da blefarite associada ao Demodex baseia-se em 3 critérios: (1) História clínica: blefarite, blefaroceratoconjuntivite ou calázio recorrente refratários ao tratamento convencional; (2) Exame à lâmpada de fenda: presença de “caspas" cilíndricas na raiz dos cílios; (3) Exame de cílios epilados à microscopia óptica: detecção de larvas ou ácaros adultos. O tratamento inclui o uso de óleo de melaleuca (tea tree oil) na higiene palpebral, mas requer adesão do paciente. O uso da ivermectina sistêmica pode ser muito útil como um complemento para o tratamento de infestação de Demodex, especialmente nos casos de insucesso relacionados com a falta de adesão do paciente à higiene palpebral.

 

REFERÊNCIAS

1 Boge-Rasmussen T, Christensen JD, Gluud B, Kristensen G, Norn MS. Demodex folliculorum hominis (Simon): incidence in a normomaterial and in patients under systemic treatment with erythromycin or glucocorticoid. Acta Derm Venereol 1982; 62:454-456. PMid:6183907

2. Rufli T, Mumcuoglu Y. The hair follicle mites Demodex folliculorum and Demodex brevis: biology and medical importance. A review. Dermatological 1981; 162:1-11. https://doi.org/10.1159/000250228

3. English FP, Nutting WB. Demodicosis of ophthalmic concern. Am J Ophthalmol 1981 ; 91:362-372. https://doi.org/10.1016/0002-9394(81)90291 -9

4. Norn MS. Demodex folliculorum. Incidence and possible pathogenic role in the human eyelid. Acta Ophthalmol Suppl 1970;108:7-85. PMid:4322592

5. Rodriguez AE, Ferrer C, Alió JL. Chronic blepharitis and Demodex. Arch Soc Esp Oftalmol 2005; 80:635-42. https://doi.org/10.4321/S0365-66912005001100004

6. Kemal M, Sümer Z, Toker MI, Erdogan H, Topolkara A, Akbulut M. The prevalece of Demodex folliculorum in blepharitis and the normal population. Ophthalmic Epidemiol 2005; 12:287-90. https://doi.org/10.1080/092865805910057

7. Rusiecka-Ziólkowska J, Nokiel M, Fleischer M. Demodex - An Old Pathogen or a New One? Adv Clin Exp Med 2014; 23:295-8. https://doi.org/10.17219/acem/37081

8. Zhao YE, Wu LP, Hu L et al. Association of blepharitis with Demodex: a metaanalysis. Ophthalmic Epidemiol 2012; 19:95-102. https://doi.org/10.3109/09286586.2011.642052

9. Holzchuh FG, Hida RY, Moscovoci BK, Albers MBV, Santo RM, Kara-José N, Holzchuh R. Clinical Treatment of Ocular Demodex folliculorum by Systemic Ivermectin Am J Ophthalmol 2011;151:1030-4.

10. Liu J, Sheha H, Tseng SCG. Patogenic role of Demodex mites in blepharitis. Curr Opin Allergy Clin Immunol 2010; 10:505-10. https://doi.org/10.1097/ACI.0b013e32833df9f4

11. Kim JH, Chuan YS, Kim JC. Clinical and immunological responses in ocular demodecosis. J Korean Med Sci 2011 ; 26:1231 -7. https://doi.org/10.3346/jkms.2011.26.9.1231

12. Gao Y-Y, Di Pasquale MA, Li W, et al. In vitro and in vivo killing of ocular Demodex by tea tree oil. Br J Ophthalmos 2005; 59:113-25. https://doi.org/10.1136/bjo.2005.072363

13. Koo H, Kim TH, Kim KW, Wee SW, Chun YS, Kim JC. Ocular Surface Discomfort and Demodex: Effect of Tea Tree Oil Eyelid Scrub in Demodex Blepharitis. J Korean Med Sci 2012; 27:1574-9. https://doi.org/10.3346/jkms.2012.27.12.1574

14. Carson CF, Hammer KA, Riley TV. Melaleuca alternifolia (Tea Tree) Oil: a Review of Antimicrobial and Other Medicinal Properties. Clin Microbial Rev 2006; 19: 50-62. https://doi.org/10.1128/CMR.19.1.50-62.2006

 

 

 

 

 

 

Fonte de financiamento: declaro não haver.

Conflito de interesses: declaro não haver.

Recebido em: 16 de Maio de 2016.
Aceito em: 16 de Maio de 2016.


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