Luísa Grave Gross; Renata Diniz Lemos; Vinícius Dantas Almeida; Matheus Schwengber Gasparini; Arthur Pinheiro Favarato; José Paulo Cabral de Vasconcellos; Cesar Rodrigues de Lima Neto
DOI: 10.17545/eOftalmo/2021.0020
RESUMO
O glaucoma é uma neuropatia óptica crônica que figura como a principal causa de cegueira irreversível no mundo. Um dos métodos cirúrgicos disponíveis atualmente para o seu tratamento é o implante da válvula de Ahmed, dispositivo capaz de realizar um shunt entre a câmara anterior e a região subconjuntival, desviando o fluxo do humor aquoso e, consequentemente, gerando redução da pressão intraocular – o único parâmetro modificável na progressão da doença. Este trabalho descreve um caso de extrusão espontânea da válvula de Ahmed implantada em região nasal inferior. Trata-se de uma complicação rara deste tipo de implante, ocorrido no 60º dia de pós-operatório, não desencadeada por trauma ocular ou outros fatores. O número de cirurgias oculares prévias é uma condição que pode ter contribuído para a ocorrência da extrusão. A identificação e o tratamento adequado de tais complicações auxiliam na redução de possíveis infecções secundárias à extrusão, como a endoftalmite.
Palavras-chave: Válvula de Ahmed; Glaucoma avançado; Extrusão espontânea.
ABSTRACT
Glaucoma is a chronic optic neuropathy that is the main cause of irreversible blindness in the world. One of the surgical methods currently available for its treatment is the implantation of the Ahmed valve, a device capable of performing a shunt between the anterior chamber and the subconjunctival region, diverting the flow of aqueous humor and, consequently, reducing intraocular pressure - the only modifiable parameter in disease progression. This work describes a case of spontaneous extrusion of the Ahmed valve implanted in the lower nasal region. It is a rare complication of this type of implant, which occurred on the 60th postoperative day, not triggered by eye trauma or other factors. The number of previous eye surgeries is a condition that may have contributed to the occurrence of extrusion. The identification and appropriate treatment of such complications help to reduce possible infections secondary to extrusion, such as endophthalmitis.
Keywords: Ahmed glaucoma valve; Refractory glaucoma; Spontaneous extrusion.
INTRODUÇÃO
O glaucoma é uma neuropatia óptica crônica que figura como a principal causa de cegueira irreversível no mundo1. Sua fisiopatologia envolve alterações na rima neurorretiniana do disco óptico, assim como perda progressiva das células ganglionares da retina, ocasionando constrição do campo visual2.
Estimou-se que, em 2010, 60,5 milhões de pessoas eram acometidas pelo glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) ou pelo glaucoma primário de ângulo fechado (GPAF) no mundo. Tham et al. calcularam a prevalência global da doença em 3,54%, sendo a África o continente mais afetado. Para 2040, a expectativa é que este número cresça para 111,8 milhões de pessoas, com a Ásia e África comportando a maioria desses pacientes1.
Diversos fatores de risco estão associados ao desenvolvimento e à progressão desta patologia, alguns dos principais sendo: idade, história familiar, raça negra e miopia2. A redução da pressão intraocular (PIO) consiste no único parâmetro modificável na história natural da doença. Sua influência na diminuição da progressão do glaucoma já é cientificamente estabelecida. Para obtê-la, pode-se utilizar medicamentos hipotensores oculares, terapia a laser ou cirurgia3.
Um dos métodos cirúrgicos disponíveis atualmente é o implante da válvula de Ahmed, dispositivo capaz de realizar um shunt entre a câmara anterior (CA) e a região subconjuntival, desviando o humor aquoso da CA para um reservatório externo posterior, onde este será reabsorvido, gerando, assim, redução da PIO4. Sua utilização é crescente, sendo considerada por muitos como uma cirurgia de primeira escolha no tratamento do glaucoma5.
Este trabalho tem por objetivo descrever um caso de extrusão espontânea da válvula de Ahmed, uma complicação rara desse tipo de implante, e destacar aspectos relevantes já publicados na literatura a respeito das possíveis complicações relacionadas ao tratamento do glaucoma avançado com esse dispositivo.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 73 anos, com diagnóstico de glaucoma primário de ângulo aberto em ambos os olhos (AO) há 8 anos, foi submetida em 2017 à cirurgia de trabeculectomia com mitomicina C (TREC) em AO devido à progressão do glaucoma a despeito do uso regular de quatro colírios hipotensores. No seguimento pós-operatório do olho direito (OD), houve aumento progressivo da pressão intraocular (PIO) devido à cicatrização subconjuntival da bolha filtrante, tendo sido submetida a agulhamento com mitomicina por 2 vezes, sem sucesso. Nove meses após a primeira cirurgia, foi realizada nova TREC em OD.
Em 2019, houve cicatrização da nova bolha filtrante e, consequentemente, reincidência do descontrole pressórico, sendo, pois, indicado implante de válvula de Ahmed na região temporal superior. Após um mês do procedimento, foi necessária a remoção do implante por ocorrência de hipotonia ocular com atalamia grau III, refratária a diversas tentativas de preenchimento de CA utilizando-se metilcelulose e sutura do tubo.
Três meses depois, a paciente estava em uso das quatro classes de colírios hipotensores em OD, além de acetazolamida 250 mg via oral quatro vezes ao dia, e a PIO persistia em torno de 17 mmHg. Apresentava acuidade visual (AV) de 0,3 em OD e escavação de 0,9x0,9 no mesmo olho. Foi, então, realizada nova cirurgia para implante de válvula de Ahmed, agora na região nasal inferior, sendo necessário enxerto de conjuntiva do olho contralateral para recobrimento adequado do implante e patch escleral.
No pós-operatório, evoluiu nos primeiros 15 dias com PIO ao redor de 10 mmHg. No 30º dia de pós-operatório iniciou combinação fixa de timolol 0,5% e brimonidina 0,1% devido à PIO de 16 mmHg. No 60º dia de pós-operatório, procurou a urgência oftalmológica do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com quadro de extrusão completa da válvula (Figura 1). A paciente negou qualquer tipo de trauma, prurido ocular ou outros possíveis fatores desencadeantes.
Após essa complicação, foram reintroduzidas quatro classes de colírios hipotensores e acetazolamida 125 mg via oral três vezes ao dia (devido à intolerância a doses maiores), controlando a PIO em 10 mmHg. Paciente mantinha AV de 0,3 OD, escavação de 0,9x0,9 e sem evidência de descolamento de coroide. Segue em acompanhamento.
DISCUSSÃO
A válvula de Ahmed é composta por um prato conectado a um tubo de silicone, apresentando diâmetro externo de 600 μm e interno de 300 μm. Para sua implantação, o tubo é curvado no limbo em direção à CA do globo ocular, geralmente formando um ângulo de 90 graus. O prato é suturado à esclera posteriormente4. Esse dispositivo desvia o humor aquoso da CA para um reservatório externo posterior, onde este será reabsorvido, reduzindo, assim, a PIO. Sua utilização é geralmente reservada para pacientes com glaucoma refratário ou já submetidos, sem sucesso, a outras cirurgias antiglaucomatosas.
Algumas complicações relacionadas à válvula de Ahmed incluem hipotonia ocular, descompensação corneana por toque do tubo com o endotélio, deiscência conjuntival, excesso de fibrose ao redor do prato, exposição do implante e, mais raramente, infecção5. A extrusão pela conjuntiva e o contato do tubo com o endotélio são complicações relacionadas ao tubo em si. A exposição de qualquer parte – tubo ou prato – é considerada uma emergência ocular, pois pode desencadear um quadro de endoftalmite devido à migração de microrganismos para dentro do globo ocular a partir de sua superfície e conjuntiva4.
A extrusão espontânea desse dispositivo é extremamente rara, havendo na base de dados MEDLINE® somente dois relatos de caso. No primeiro, a extrusão ocorreu três meses após uma celulite orbitária pós-operatória tratada com sucesso6. No segundo, a válvula de Ahmed foi implantada para correção de glaucoma pós traumatismo ocular refratário a controle medicamentoso. O estudo não especifica quanto tempo após o procedimento se deu a complicação7. Há, ainda, outro relato acerca da extrusão iminente de outro tipo de implante de drenagem, denominado Ex-PRESS8.
Muitos trabalhos mostram que o local da implantação do dispositivo influencia no risco de exposição do tubo, sendo a região inferior aquela que oferece o maior risco5,9. Acredita-se que isso ocorra devido à maior exposição da conjuntiva e da porção anterior do dispositivo, além de trauma mecânico ocasionado pela pálpebra inferior. Assim, muitos cirurgiões preferem a região temporal superior para a implantação da válvula de Ahmed, uma vez que ela estará coberta pela pálpebra superior. Outros fatores que contribuem para o dano conjuntival e a consequente exposição do tubo são o uso de múltiplos colírios hipotensores, cirurgias oculares prévias e trauma ocular9,10.
Byun et al. estudaram ainda outros fatores, como idade, tipo de glaucoma, diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica, visando identificar se apresentavam relação significativa com a exposição de parte do dispositivo. No estudo, nenhuma dessas características influenciou significativamente na exposição do implante. Apenas o número de procedimentos cirúrgicos oculares prévios foi um fator de risco significativo11.
Diversas técnicas, como a rotação do flap escleral e avanço e duplicação da cápsula de Tenon, já foram propostas para a cobertura do tubo após extrusão. Pericárdio bovino, dura-máter, membrana amniótica e esclera foram alguns dos materiais já utilizados visando ao mesmo objetivo4. No entanto, em muitos casos provaram ser ineficientes na prevenção da reexposição do tubo4.
Recentemente, Nardi et al. descreveram uma nova técnica cirúrgica proposta para manejo da exposição do tubo na válvula de Ahmed. Eles advogam que o insucesso das técnicas anteriores advém do esforço visando cobrir a exposição, sem correção de sua causa, o que, consequentemente, levaria mais facilmente a uma reexposição. De acordo com sua teoria, como o tubo é de material elástico, quando curvado para entrada na câmara anterior, ele tenderá a voltar a sua posição original. O que impediria esse processo seria a rigidez do local de sua entrada. Se o local for enfraquecido, o tubo poderá voltar a sua posição original, indo em direção ao endotélio corneano4. Com isso, defendem que duas vantagens importantes poderiam ocorrer ao se realizar um maior raio de curvatura para entrada na câmara anterior. Primeiramente, com um trato intraescleral maior, a posição na CA ficaria mais estável; em segundo lugar, a eventual força contra o material de cobertura da válvula e contra a conjuntiva seria menor, reduzindo, assim, o vetor perpendicular à conjuntiva4. Posteriormente, o grupo acrescentou à técnica uma entrada mais oblíqua que o eixo da válvula na CA e a utilização de patch escleral com cola de fibrina, o que proporciona um fechamento à prova d’água ao redor da entrada do tubo. O resultado é uma câmara anterior profunda e sem inflamação nos primeiros dias de pós-operatório concomitante ao início do funcionamento do tubo4.
A paciente em questão havia passado por diversas cirurgias no globo ocular direito antes de ser submetida à colocação de válvula de Ahmed em região nasal inferior com enxerto conjuntival neste olho, ocasionando áreas de fibrose tanto na conjuntiva quanto na esclera. Isso dificulta tecnicamente uma próxima cirurgia ocular, tornando-a mais complexa e aumentando os riscos pós-operatórios de complicações, devido a uma maior inflamação e dificuldade de cicatrização. Além disso, a utilização crônica de colírios hipotensores também pode ter contribuído para erosão conjuntival, podendo se associar à ocorrência de uma extrusão espontânea10.
Este relato de caso discorre a respeito de uma complicação rara relacionada à válvula de Ahmed. Trata-se de um dispositivo eficaz, na grande maioria dos casos, na redução da PIO e, portanto, indicado no controle da progressão de glaucomas avançados ou refratários a outros tratamentos. O oftalmologista deve ter em mente quais as possíveis complicações decorrentes do procedimento, a fim de identificá-las e tratá-las adequadamente, assim como identificar os pacientes que apresentam mais fatores de risco para o insucesso da implantação desse dispositivo.
REFERÊNCIAS
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11. Byun YS, Lee NY, Park CK. Risk factors of implant exposure outside the conjunctiva after Ahmed glaucoma valve implantation. Jpn J Ophthalmol. 2009;53(2):114-9.
INFORMAÇÃO DOS AUTORES
Financiamento: Declaram não haver
Conflitos de Interesse: Declaram não haver
Recebido em:
29 de Setembro de 2020.
Aceito em:
16 de Janeiro de 2021.