Harley E. A. Bicas**
DOI: 10.17545/eoftalmo/2018.0038
RESUMO
Revisão de mudanças de métodos diagnósticos e terapêuticos, clínicos e cirúrgicos dos estrabismos, principalmente relacionados a estudos protagonizados pelo autor.
Palavras-chave: Cicloplegia; Métodos diagnósticos; Viscosidade; Campos magnéticos; Cirurgias dos estrabismos.
ABSTRACT
Revision of changes in diagnostic and therapeutic methods, clinical and surgical of strabismus, mainly related to studies carried out by the author.
Keywords: Cycloplegia; Diagnostic methods; Viscosity; Magnetic Fields; Strabismus Surgery.
RESUMEN
Revisión de cambios de métodos diagnósticos y terapéuticos, clínicos y quirúrgicos de los estrabismos, principalmente relacionados a estudios protagonizados por el autor.
Palabras-clave: Cycloplegy; Métodos Diagnósticos; Viscosidad; Campos Magnéticos; Cirurgía de Estrabismo.
A visão --- o sentido sobre o qual se erige a Oftalmologia e todos os seus cuidados --- compõe um dos assuntos mais fascinantes do conhecimento humano. E os olhos --- os órgãos pelos quais essa função se inicia --- requerem para esse desempenho um enorme e complexo conjunto de variáveis, ao qual se subordina o de suas coordenações. Não é, pois, sem surpresa que o estudo dos estrabismos --- a área do conhecimento sobre a coordenação dos olhos, para que eles possibilitem a visão binocular adequada --- suscite tantas paixões e esquivanças, quer pela quantidade de fatores que o influenciam, como pela qualidade de suas sutilezas. De fato, doze músculos oculares externos, inervados por três dos doze pares de nervos craniais e recebendo comandos de múltiplas estruturas do sistema nervosos central não torna o assunto simples. Embora, em Medicina, seja proverbial a consideração de que “cada caso é um caso”, particularmente nos estrabismos esse dito predomina.
Minha vida acadêmica foi direcionada a esmiuçar os atributos dos estrabismos. E ao receber o distintivo convite para discorrer sobre ela, revisito-a naquilo que julgo serem seus principais esboços.
ANTECEDENTES
Como resultado do continuado acúmulo e renovação de conhecimentos científicos em suas várias áreas, também a Oftalmologia se diversificou em “subespecialidades” para permitir que em suas maiores extensões os necessários aprofundamentos se mantivessem convenientemente alcançados. Nesse processo de emancipações, a área de estudo dos estrabismos foi uma das precursoras. De fato, enquanto em alguns dos campos da Oftalmologia apenas se esboçavam grupos de interesse dedicados a debate-los, para o estudo dos estrabismos e suas correlações já se consolidava de modo organizado, em 1961, o Consilium Europaeum Strabismi Studio Deditum (CESSD) --- que em 1982 se transformou na European Strabismological Association1 ---, a Japanese Association of Strabismus and Amblyopia” (1964)2 e a International Strabismological Association (1966)2,3. Nos E.U.A., um “Squint Club” informal (com reuniões desde 1955) precedeu a American Association for Pediatric Ophthalmology (1974)3. Na América Latina (apenas precedido pelo CESSD e pela JAPA) formava-se o Consejo Latinoamericano de Estrabismo (1966)4, cuja existência inspirou a formação do Centro Brasileiro de Estrabismo (1967), o “C.B.E.”, a primeira “sociedade de especialidade” dentro de nossa Oftalmologia. A segunda, a Sociedade Brasileira de Lentes de Contato e Córnea surgiria apenas em 1971 e a terceira (a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Ocular) em 1974 (quando, o C.B.E. já havia passado de sua nona jornada científica).
Toda essa efervescência associativa talvez tenha sido influenciada pelo desenvolvimento da Ortóptica, uma área dedicada a testes diagnósticos dos estrabismos e a seus tratamentos não-cirúrgicos. De fato, como esses procedimentos relacionados ao estrabismo exigiam muito tempo em suas aplicações e se tornavam cada vez mais complexos, começaram a ser delegados a profissionais paramédicos na década de 1930, ganhando relevo especial após a Segunda Grande Guerra (1938-45). Na década de 1960 a Ortóptica atingia, então, um apogeu qualitativo (extensa e diversificada relação de métodos e técnicas de exame e tratamento clínico) e quantitativo (numeroso contingente de profissionais preparadas para exercê-las). Para mostrar a proeminência da Ortóptica nos assuntos relacionados ao estrabismo basta citar que, dos fundadores do Centro Brasileiro de Estrabismo, dez eram médicos oftalmologistas e onze eram ortoptistas...
Vivia-se, pois, aquilo que se pode chamar de “o período sensorialista” dos estudos dos estrabismos, isto é, o da ênfase aos processos e afecções sensoriais (visuais) que acompanham as incorreções posicionais dos eixos visuais (desvios oculomotores), ou como suas causas, ou como suas consequências. Mesmo em círculos acadêmicos de ciência básica, essa atenção conferida aos estudos da fisiologia visual àquela época pode ser ilustrada pelos Prêmios Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1967 (Ragnar Granit, Haldan K. Hartline e George Wald “for their discoveries concerning the primary physiological and chemical visual processes in the eye”) e de 1981 (David H. Hubel e Torsten N. Wiesel “for their discoveries concerning information processing in the visual system”, publicadas, principalmente, entre os anos de 1963 e 1967).
Assim, um bom serviço de Oftalmologia deveria contar entre seu pessoal de ensino e atendimento com, pelo menos, uma ortoptista e variados instrumentos para o desempenho da Ortóptica (entre os quais o mais usado era o sinoptóforo) e da Pleóptica (técnicas de estimulação para recuperação de perdas visuais mono e binoculares). Essa era a condição do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, quando comecei minha Residência em Oftalmologia, em 1963. Gilda Baptista Soares De Sordi era a ortoptista encarregada dos exames e acompanhamentos terapêuticos dos estrábicos. Aos médicos, cabiam as cirurgias. E justamente nesse ano Gilda fica grávida, devia afastar-se em licença-maternidade e como contrapartida para acalmar o enfurecido chefe do Departamento por essa prospectiva perda de qualidade no serviço de atendimento aos estrábicos, dispõe-se a ensinar aos Residentes de Primeiro Ano (eu e outro colega) a ciência e a arte da Ortóptica, iniciando-nos no manejo do --- até então --- indispensável (mas obscuro) sinoptóforo. Talvez sem Guy, o fruto dessa abençoada gravidez, meu caminho acadêmico tivesse sido diferente: meu primeiro trabalho (ainda como sextanista e Aluno Monitor do Departamento) fora sobre pressão intraocular; meus primeiros estudos em laboratório (de Bioquímica) versavam sobre a composição do vítreo; e minha Tese de Doutorado sobre ceratometria. O fato é que muito cedo (outubro de 1964) contratado como Docente (“Instrutor”) do Departamento que então se formava, fui designado para coordenar as atividades do Setor de Estrabismo, tanto pelo engajamento com o assunto (ninguém mais o queria...), como por minha própria propensão e gosto no desempenho dessas atividades. E acho ótimo que tenha sido essa a minha história acadêmica.
O PERÍODO SENSORIALISTA
A supressão era medida, pelo sinoptóforo, em sua extensão (figuras díspares apresentadas a cada olho, para qualificar a resultante percepção binocular simultânea) como foveal, macular, periférica ou ausente, conforme, respectivamente, essa percepção binocular simultânea estivesse presente mesmo quando as imagens fossem de tamanho muito reduzido; ou se ocorresse a neutralização cortical de uma delas apenas em áreas centrais muito restritas, correspondentes à fóvea de um dos olhos; ou quando se achassem mais extensas; ou, finalmente, quando nenhuma simultaneidade de percepção visual binocular fosse referida. Mas, também, em sua profundidade, reconhecida como tanto maior (supressão mais intensa, pior binocularidade) quanto mais densa fosse a coloração de um filtro transparente, usado de um dos olhos para que, na fixação a uma fonte luminosa, a diplopia da pessoa examinada fosse suscitada. Nessa condição de percepção simultânea, a magnitude do ângulo formado pelos respectivos eixos visuais na fixação de um ponto, isto é, o desvio entre eles, era a medida “básica” do estrabismo (ou da heteroforia). A “correspondência retiniana” era avaliada como normal (C.R.N.) se a medida “objetiva” do desvio coincidisse com a “subjetiva” (o ângulo entre os eixos visuais com o qual o examinado referia a percepção simultânea) ou anômala (C.R.A.), caso tais medidas diferissem. Quando detectada, a C.R.A. era classificada pelo seu tipo (harmônica, desarmônica) e intensidade (“profundidade”). Tratamentos ortópticos e pleópticos eram então indicados para a recuperação desse estado anormal da binocularidade.
Uma vez detectada a percepção (binocular) simultânea (considerada como o grau mais elementar da binocularidade), passava-se a medir a fusão binocular, principalmente sua amplitude, isto é, a convergência fusional e os vários tipos de divergência fusional (horizontal, vertical e torcional).
Finalmente, e ainda usando o sinoptóforo, passava-se à avaliação do “terceiro” (mais elevado) grau da binocularidade, a estereopsia, por imagens binocularmente fusíveis, mas com discretas dissimilaridades entre elas.
Do arsenal de dispositivos necessários ao consultório, fazia parte um equipamento para a detecção do comportamento visual do examinado, as luzes de Worth em que o paciente, usando filtros cromáticos vermelho (diante do olho direito) e verde (diante do olho esquerdo) era convidado a informar como percebia um painel com quatro fontes luminosas: uma à esquerda e outra à direita (de um centro imaginário), vermelhas (de cores complementares às do filtro verde, para não serem percebidas pelo olho esquerdo), uma acima, verde (de cor complementar à do filtro vermelho, para não poder ser vista pelo olho direito) e uma branca, abaixo, visível apenas pelo olho direito (se o esquerdo fosse suprimido), apenas pelo olho direito (se o direito fosse suprimido), ou alternadamente. Finalmente, a fonte luminosa de baixo (branca) era percebida como vermelha (se o olho direito fosse o “dominante” ou o “fixador”, ou verde quando essas condições coubessem ao olho esquerdo. (Veja comentários na seção “Arthur Jampolsky”.)
No que tange a tratamentos, o sinoptóforo dispunha das chamadas escovas de Haidinger, a imagem de uma “sombra” (produzida por luz polarizada vista através de filtros polaroides), percorrendo um círculo no plano frontal --- técnica usada para estimulação da fóvea, no tratamento da fixação excêntrica e recuperação da ambliopia. Com mesma finalidade, usava-se a eutiscopia (uma oftalmoscopia direta, com intensa iluminação periférica, exceto para a área central, preservando-a, para que depois essa região fosse a única, funcionalmente “disponível”, para a fixação de optotipos apresentados à frente do olho assim tratado). Uma variante de princípio similar era a do tratamento pleóptico das pós-imagens, com o disparo de um “flash” luminoso de grande intensidade para “cegar” (temporariamente) a retina periférica, preservando-se as áreas centrais da retina. A avaliação dos tipos e magnitudes dos desvios (quando não houvesse supressão binocular) era feita pelas telas de Hess-Lancaster.
Embora não fosse uma regra rígida, nos desvios de ângulos relativamente grandes, preferia-se projetar a cirurgia em um dos olhos para, depois, complementar a correção do desvio remanescente pela operação no outro olho. Assim, também, procedia-se nos desvios horizontais e verticais associados: operava-se um dos desvios e, em outra data, o outro. As aberturas conjuntivais eram feitas semilunares, distantes do limbo; os fios de sutura dos músculos à esclera eram de catgut 4-0 (depois os de catgut cromado e, adiante, os de calibre 5-0). Granulomas cicatriciais eram comuns. Usavam-se, após a cirurgia, lentes oclusoras com orifícios centrais para “induzir” os olhos à busca de fixação centralizada, binocularmente.
Repercutindo a íntima relação entre o atendimento dos estrabismos e o exercício da Ortóptica, foi criado, em 1967, o Curso de Ortóptica na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da U.S.P. Mas sua duração foi curta, extinguindo-se logo depois de meu retorno de estudos no Institute of Ophthalmology of the University of London(1969-71).
De qualquer modo, e apesar da maciça influência dos aspectos sensoriais no exame e tratamento dos estrabismos, meus interesses de estudo se direcionaram à influência dos estímulos acomodativos sobre o equilíbrio oculomotor horizontal (suscitando a convergência) e, pois, meus primeiros trabalhos foram sobre a acomodação5, sobre a convergência6-8 e sobre a relação sincinética entre essas duas funções9-18. Desse aprofundamento resultou a proposta de um novo teste clínico19 e a premiação anual da Sociedade Brasileira de Oftalmologia (Prêmio Adaga “August Lohnstein”, 1970) a um dos artigos20.
Pela íntima influência da acomodação sobre o equilíbrio oculomotor, exigia-se --- como, aliás, até hoje --- a necessidade de conhecimento dos valores absolutos da refratometria ocular. De fato, era “regra de ouro” que se prescrevesse a correção total de hipermetropias, principalmente em esotropias já que, algumas, poderiam ser completamente resolvidas por esse procedimento (as esotropias “acomodativas puras”); outras pela correção adicional de lentes “para perto” (bifocais, nas esotropias “hipoacomodativas”, com altas relações CA/A); e, finalmente, nos casos em que tais correções ópticas não fossem suficientes para a anulação dos desvios para longe e para perto, indicavase a cirurgia, mas exclusivamente para corrigir o componente “não acomodativo” do desvio, isto é, o que permanecia após a correção total da hipermetropia. Assim, para o conhecimento da refratometria total (ou absoluta) era usada a cicloplegia pelos colírios de atropina 1%, três vezes ao dia (pela manhã, à tarde e à noite), consecutivamente durante três dias imediatos anteriores aos do exame. É curioso ressaltar que esse uso era muito bem aceito, embora exigisse uma segunda visita do paciente para complementação do exame (refratométrico); embora a duração da cicloplegia então produzida ainda permanecesse por cerca de duas semanas, prejudicando desempenhos escolares e visuais das crianças examinadas (e adultos); e, finalmente, embora essa prática pudesse ser perigosa, por se entregar ao usuário, ou seu responsável, um frasco de colírio (5 ml) cujo conteúdo total de atropina (50 mg) seria quatro vezes maior do que a dose potencialmente letal para uma criança de 10 kg21. Todavia, mais interessante é o fato de que apesar de todas essas inconveniências, esse procedimento pudesse ser, sobretudo, julgado insuficiente para produzir a cicloplegia total. Realmente, em um subsequente exame refratométrico para controle da correção total da hipermetropia, realizado depois de alguns meses, não era incomum achar-se um valor maior dela, justificando a crença de que um procedimento cicloplégico ainda mais rigoroso devesse ser necessário. Assim, chegava-se a propor atropinização de oito dias22 (apesar de que, nesse trabalho, apenas cinco casos entre 41 examinados, apresentaram diferença de 0,75 D a mais na hipermetropia, com a atropinização de oito dias, quando comparada à de três).
Com essa hipótese de insuficiência da atropinização durante três dias para se chegar à cicloplegia total, convidei um oftalmologista boliviano, que já havia concluído sua especialização na Colômbia, mas desejava aprofundá-la no Brasil, e já, comprovadamente, excelente em suas medidas refratométricas, a participar de um estudo sobre esse procedimento. Nele, cada um de nós, independentemente, anotava o valor da refratometria realizada pelo outro (sem que este tivesse conhecimento desse valor). Os pacientes deviam usar o colírio de atropina 1%, uma gota em cada olho, três vezes ao dia, durante dez dias, sendo reexaminados no 3°, 5°, 7° e 10° dias. Mas eram divididos aleatoriamente em três grupos, nos quais o exame refratométrico era feita no dia “zero” (antes de se iniciar a sequência atropínica) cerca de 60 a 90 minutos após a instilação de cinco gotas em cada olho (uma a cada três minutos) de ciclopentolato (1-hidroxiciclopentilfenilacetato de betadimetilaminoetil) 1% + hioscina 0,05% (grupo I), homatropina (brometo de) 2%, três gotas, uma a cada três minutos (grupo II) e atropina (sulfato de) 1%, duas gotas, uma a cada cinco minutos (grupo III). Na análise dos dados, ao final do estudo, as refratometrias realizadas pelos dois examinadores mostraram-se significativamente iguais nas respectivas “duplas” medidas. E, para um certo desapontamento relativamente à hipótese que pretendia ser provada, as medidas no 3°, 5°, 7° e 10° dias eram, também, muito aproximadas entre si: não havia potenciação ou acumulação do efeito com as dosagens continuadas! E para ainda maior surpresa, as medidas iniciais de quaisquer dos grupos eram, praticamente, “idênticas” às da atropinização prolongada que se seguia. Ou seja, independentemente da droga utilizada, a profundidade da cicloplegia alcançada era a mesma, não aumentava com a atropinização clássica (três dias) que se seguia e nem, ainda, se ela fosse continuada22,23. Esses resultados ensejaram a proposta de mudança do método clássico de cicloplegia nos estrabismos para uma imediata (no consultório), mas ainda se sugerindo que se preferisse a atropina23 e que, nesse primeiro dia, se fizesse o uso de três instilações dela24. ... (Só mais adiante adotar-se-ia a cicloplegia por ciclopentolato em lugar da atropina.) Um jovem de um país da América do Sul não poderia ousar mais.
ARTHUR JAMPOLSKY
Não foi o único a influenciar o desenvolvimento da Estrabismologia da América Latina. Mas é a ele que (principalmente e de modo justamente reconhecido) ela se deve de modo, qualidade e intensidade maiores.
Jampolsky criou e modelou o Smith-Kettlewell Institute of Visual Sciences (atualmente Smith-Kettlewell Eye Research Institute) em San Francisco, um centro de pesquisas avançadas na área de motilidade ocular que logo se tornou o marco referencial a quem desejasse aperfeiçoar-se na ciência (mais que na arte) relacionada aos estrabismos. Com uma capacidade expositiva de alto poder de convencimento, Jampolsky transformou práticas e modos de pensar e de agir. Com argumentos perfunctórios, lógicos e até tautológicos, ensinava: “Se alguém planeja uma única correção cirúrgica, pode ser que tenha que fazer uma segunda. Mas se, de início planejar fazer duas, fará no mínimo duas; e, talvez, tenha que fazer três (ou mais).” “Se alguém planeja a correção do desvio horizontal e não a do vertical, o desvio vertical remanescente (e esperado) ajudará a descompensar, novamente, o horizontal.” E coisas do tipo, para conceituar que o planejamento cirúrgico do estrabismo devesse contemplar a correção de toda a sua quantidade e tipo de uma só vez. A ele se atribui o “fim da Ortóptica” na América Latina, por frases como a de “Por que examinar com as luzes de Worth? Pelo tipo de estrabismo apresentado, já se prediz o resultado do exame antes de fazê-lo” (uma constatação óbvia, depois de uma simples reflexão sobre a finalidade do teste). “É o médico que deve examinar o paciente e não delegar a outros que o façam” (pedagogia sobre que se aprende fazendo). “Uma injustiça dizerem não termos sinoptóforo no S.K.I.V.S.; temos, sim ... no museu” (para desmistificar a importância do instrumento e robustecer o ensino de que os exames devessem ser realizados nas fixações oculares a objetos no espaço “real”, à frente do paciente). Duas frases do argentino Alberto Ciancia, depois Presidente da International Strabismological Association, dão bem a medida do que ocorria: “Se Jampolsky estiver certo, avançaremos vinte anos; se estiver errado, retrocederemos vinte...” E, mais adiante: “Antes de Jampolsky o estudo do estrabismo era simplesmente pavoroso; depois de Jampolsky tornou-se pavorosamente simples...”
Na Estrabismologia então praticada, uma área em que os avanços da tecnologia não eram predominantes, a propalada engenhosidade latino-americana (até certo ponto estimulada pela falta de rígidos padrões de controle sobre inovações e quebras de paradigma) poderia estar mostrando méritos e necessidade de incentivo. E foi, justamente, Jampolsky --- que sempre considerou com alto apreço os trabalhos apresentados nos Congressos do Conselho Latino-Americano de Estrabismo (CLADE) --- um dos primeiros a valorizar os estudos aqui realizados e revelar-lhes respeito. Suas menções a estudos de estrabismólogos latino-americanos em suas conferências magistrais e participações de mesas-redondas de outros congressos mundiais e o destaque que lhes dava, foi uma dádiva para o crescimento da autoestima e confiança deles.
Particularmente, devo a Jampolsky uma das maiores honras recebidas. Quando em 1972 A. Edward Maumenee (1913-98), Diretor do Wilmer Institute da famosa Johns Hopkins University (Baltimore, MD) perguntou-lhe quem deveria convidar para substituir o respeitadíssimo Gunter K. von Noorden (1928-2017) o, até então, Chefe de seu Setor de Estrabismo, que saía para o Baylor College of Medicine (Houston,TX)3, Jamposlky indicou-me. Fui então convidado a dar um curso estrabismo, para que o corpo docente do Wilmer Institute opinasse. Findo o curso, Maumenee me propôs um contrato de seis anos (que eu achava muito, por não se saber se minha família adaptar-se-ia a Baltimore) e mencionava que nos primeiros eu deveria me devotar à reorganização dos serviços ambulatoriais e cirúrgicos, sem muito tempo às pesquisas. O então necessário desligamento da Universidade e o afastamento das raízes familiares e afetivas do Brasil me assustava por me parecer um caminho sem volta. Pedi tempo para decidir. De Baltimore, segui para San Francisco, para conhecer o Smith-Kettlewell Institute of Visual Sciences e agradecer pessoalmente a Jamposlky essa quase incrível indicação. Na conversa que tivemos, percebendo minhas indecisões, foi generoso: “Venha para o Smith-Kettlewell”. E eu, surpreso com o distintivo convite: “Para fazer o que?” “Aquilo que você quiser”. “Por quanto tempo?” “O tempo que você quiser”. “Quando?” “Quando você quiser”. Não podia haver proposta mais sedutora e foi assim que minha decisão se fez. Fui ao S.K.I.V.S. (1974-75). E acho ótima que tenha sido essa a minha história.
Assim começava uma nova fase de minha vida acadêmica, que coincidiu com uma mudança importante no modo como a Estrabismologia passou a se desenvolver.
O PERÍODO MECANICISTA
No tempo em que a Ortóptica passava pelo seu apogeu e, certamente, por ela influenciados, já se delineavam estudos e comentários sobre “forças”, “elasticidades”, “tensões”, “velocidades”, “acelerações”, “trabalho”, “energia”, “vetores”, “matrizes” etc., mais relacionados a temas da Dinâmica e da Física que da Psicobiologia25-29, e para os quais convinha uma linguagem matemática. Esses temas vieram a preponderar na Estrabismologia, dando-lhe novas feições. Começava a se aprofundar a Mecânica Ocular, relacionada, principalmente, ao estudo de forças atuantes no sistema oculomotor e seus efeitos. Elas serão aqui apresentadas separadamente, embora seja artificial e até contraditória a dissociação dessas forças componentes do equilíbrio oculomotor, pela íntima interação entre as chamadas “ativas” (relacionadas ao comando inervacional do sistema regulador do posicionamento e movimentação dos olhos) e as “passivas” (devidas aos componentes das estruturas perioculares). Por exemplo, um músculo ao se relaxar “permite” uma rotação ocular no sentido oposto à que ocorre por sua contração; mas, simultaneamente, por se distender, restringe essa mesma rotação “permitida”. Mas o direcionamento de pesquisas a uma dessas vertentes, mais que à outra, justifica a conveniência da separação entre elas.
A) Forças ativas
A primeira visita de Jampolsky ao Brasil foi em setembro de 1971 (XVI Congresso Brasileiro de Oftalmologia, Campinas). Lembro-me de seus elogiosos comentários à minha apresentação em um Simpósio sobre “Desvios verticais”, quando discorri sobre “Propedêutica e diagnóstico dos desvios verticais”. É possível que, nessa ocasião, eu tenha aludido a minhas observações sobre a inconsistência do clássico método de Parks, o padrão-ouro para diagnósticos do “músculo causador” de um desvio vertical. Mas os elogios eram para um conceito introdutório da apresentação, o de que os músculos elevadores do olho eram quatro (e não apenas o reto superior e o oblíquo inferior) e os abaixadores do olho eram quatro (e não apenas o reto inferior e o oblíquo superior). Os dois adicionados, tanto para um caso quanto para o outro eram os retos horizontais (medial e lateral). A menção, efetivamente, confrontava as noções que prevaleciam sobre as ações dos músculos oculares externos conforme definidas pelos célebres diagramas de Márquez e de Van der Hoeve30,31 (figura 1) e explicitamente reforçadas pelos ensinamentos de um dos mais respeitados livros de texto, que pontuava para os retos horizontais a ação horizontal única: “Droit externe. II est abducteur et c’est là sa seule action.” “Droit interne. Il est adducteur et c’est là sa seule action” 30.
A ideia não era original, revisitando a abordagem dinâmica das ações musculares de Castanera Pueyo31 (em lugar da estática, então dominante). Essa noção de como as ações de um músculo ocular externo variavam conforme a direção à qual se dirigia o eixo visual principal (de fixação) tinha por fundamento a distribuição vetorial da força originada de sua respectiva contração, aplicada ao olho.
Krewson27 havia analisado os componentes vetoriais da força de um músculo ocular externo (MOE) em diferentes pontos de fixação, mas limitou seu estudo a uma única direção do olhar (a horizontal). Boeder28,29, considerou o trabalho total realizado por um MOE em diferentes situações do olhar, mas não se preocupou em investigar seus componentes, nos planos fundamentais. Assim, decidi-me a abarcar todo o assunto, isto é, o das diferentes ações de cada um dos MOE (a horizontal, a vertical e a torcional) representadas em um plano frontal e de como elas podiam variar em função do próprio deslocamento ocular. Isso implicava por começar pelo estudo dos vários sistemas com que as rotações podem ser definidas32 (é curioso que ainda não se tenha chegado, sequer, a um consenso sobre qual deva ser o referencial a adotar como padrão), e por uma análise matemática, genérica, das rotações oculares33, para se chegar ao estudo dos componentes vetoriais da força de cada MOE nas diferentes posições oculares, figuradas num plano frontal, com medidas de até 50° em cada direção cardeal, a partir da posição primária do olhar34. Em seguida vinham os cálculos do comprimento de cada músculo (para conhecimento de seu estado de eventual contração ou relaxamento) e do respectivo trabalho realizado (a partir da posição primária do olhar a cada uma das posições do espaço)35; os das relações entre o chamado arco de contato (do músculo com a esclera) e a rotação produzida36. E se terminava com o estudo da variação da força realizada por um MOE, para que o eixo visual alcance uma dada direção do espaço (a partir da primária) --- o que corresponde a uma integração de seus componentes vetoriais de ação em cada um dos três planos fundamentais de análise (o horizontal, o vertical e o frontal, para as ações torcionais)37 --- e o respectivo trabalho realizado38. Uma síntese dessa série precedeu-a39.
Concomitantemente a esse estudo das forças ativas (decorrentes da ação muscular mediada pela inervação oculomotora) também se abordava a noção das forças passivas (as de contenção dos movimentos)40 e de como elas se relacionavam, para formar um sistema auto-regulável41 (trabalho que recebeu o Prêmio Barbosa da Luz, do XIX Congresso Brasileiro de Oftalmologia, 1977). Desse aprendizado, resultou uma noção holística, de completa integração do funcionamento dos MOEs. De fato, em releitura da lei da inervação recíproca (Sherrington), tornava-se óbvio que a ação de um músculo, por exemplo, a adução, pela contração do reto medial, só era possível pelo relaxamento simultâneo de seu antagonista, o reto lateral. (Tanto que, na síndrome de Duane do tipo I, a adução ocular é muito reduzida pela cocontração simultânea do reto lateral.) Ora, daí se pôde postular que o reto lateral era, também, um músculo atuante (por relaxamento) na adução. Ou seja, convinha entender que a adução era, principalmente, iniciada pelo músculo reto medial, ajudada por sinergistas (os retos superior e inferior) e permitida pelo relaxamento dos respectivos oponentes (o reto lateral, antagonista direto; e os oblíquos, antagonistas indiretos). Similarmente, a elevação era iniciada pelo reto superior e pelo oblíquo inferior (sendo irrelevante, para o conceito, a prova de se o oblíquo inferior age primariamente na elevação, ou apenas como seu adjuvante), ajudada pelos retos horizontais (medial e lateral) e permitida pelo relaxamento dos respectivos antagonistas (o reto inferior e o oblíquo superior). Enfim, os músculos oculares externos comprometidos na elevação não são, apenas, os dois classicamente admitidos (o reto superior e o oblíquo inferior), nem quatro (ao se considerar, também, os retos horizontais) mas todos os seis (o reto inferior e o oblíquo superior pela necessidade de seus relaxamentos).
Outro argumento para se chegar a essa concepção é o de que tal interação dos MOE não é apenas casual, mas imprescindível para assegurar que uma rotação pura (em apenas um plano) possa ocorrer. De fato, para a elevação pura, por exemplo, o reto superior, o principal elevador, deve ser acionado. Mas esse músculo é, também, adutor e inciclodutor. Pelo relaxamento simultâneo do reto inferior (cuja ação é de abaixamento, mas, também, de adução e exciclodução), a elevação seria favorecida, mas acompanhada de abdução (que poderia, eventualmente, contrabalançar a adução pelo reto superior) e de inciclodução (esta, positivamente, adicionada à do reto superior). Por outro lado, a participação dos oblíquos (o inferior, ao se contrair, produzindo elevação, abdução e exciclodução; o superior, ao se relaxar, para produzir elevação, adução e exciclodução), proveria a combinação de elevação e exciclodução (para anular a inciclodução suscitada pelos retos verticais). O efeito horizontal (abdução pela contração do oblíquo inferior e adução pelo relaxamento do oblíquo superior) poderia, eventualmente, ser compensado por uma suposta simetria de ação desses músculos antagônicos. De qualquer modo, para as circunstâncias em que essa suposta simetria das ações horizontais antagônicas (dos músculos retos verticais e oblíquos) deva ser admitida (por exemplo, em posições terciárias do olhar), desequilíbrios horizontais associados (adução ou abdução) estariam também presentes. Assim, por exemplo, a participação dos músculos de ação horizontal (predominante), para assegurar que uma rotação (por exemplo, para cima e para a direita) ocorra, deve ser, necessariamente, cogitada. Em outras palavras, um grupo muscular produziria um tipo de ação (os retos verticais dando a ação vertical, mas acompanhada de ações horizontais e torcionais indesejadas, cujas anulações requerem a participação ativa dos oblíquos (para prover a torção compensatória da indesejada associada) e dos retos horizontais (para prover a ação horizontal compensatória da indesejada associada).
Enfim, cada par de músculos antagonistas diretos (retos verticais, retos horizontais e oblíquos), apresenta ações opostas em posição primária do olhar, uma das quais se potencializa pela contração de um músculo e relaxamento do outro, em obediência à lei de Sherrington (a horizontal pelos retos horizontais; a vertical pelos retos verticais e a torcional pelos oblíquos). No caso dos retos verticais e dos oblíquos a ação torcional daqueles e a vertical destes, embora bem reduzidas relativamente às principais (respectivamente verticais e torcionais) também se potencializa pela lei de Sherrington (daí esses quatro músculos serem chamados “cicloverticais”). Por exemplo, a estimulação dos retos verticais gera elevação e inciclodução (pequena); ou abaixamento e exciclodução (pequena). Por outro lado, a estimulação dos músculos oblíquos produz elevação (pequena) e exciclodução; ou abaixamento (pequeno) e inciclodução. Tais combinações suscitam a possibilidade de estimulações inervacionais diferenciadas para ativações desses músculos, como elementos diagnósticos de suas funções. Por exemplo, a elevação suscita a ativação (contração) do reto superior e do oblíquo inferior (e o relaxamento de seus antagonistas), enquanto o estímulo para a inciclodução desse olho (por via reflexa, pela inclinação da cabeça para o lado do ombro ipsolateral) suscita a ativação do reto superior e do oblíquo superior (e o relaxamento de seus respectivos antagonistas). A elevação em abdução, com a inclinação de cabeça para o lado do ombro ipsolateral (ou seja, um movimento ocular suscitado em uma direção que, então, corresponde à horizontal) daria, pois, uma estimulação maior, especificamente, à contração do reto superior. Assim, também, em direções horizontais (nas inclinações da cabeça) estariam os movimentos diagnósticos suscitados para os outros músculos comprometidos com hipofunções em casos de desvios verticais (figuras 3 e 4).
A1) Aplicação dos conceitos sobre forças ativas
Aliás, é justamente a possibilidade de possíveis ativações aos músculos cicloverticais em diferentes posições do olhar que gerou a proposta de Parks42 para o diagnóstico diferencial sobre em qual deles poderia ser demonstrada a hipofunção muscular predominante, em um estrabismo ciclovertical. Inequivocamente, trata-se de um teste elegante e simples, baseado em três “passos”. O primeiro deles corresponde à simples constatação de qual seja o tipo do desvio (E/D ou D/E) para se começar o raciocínio com base em, apenas, quatro músculos (possíveis hipofuncionantes) entre os oito cicloverticais a estudar. Por exemplo, em um desvio D/E, os MOE consideráveis como possíveis hipofuncionantes são o reto inferior direito (RID), o oblíquo superior direito (OSD), o oblíquo inferior esquerdo (OIE) e o reto superior esquerdo (RSE). O segundo passo corresponde a medir o desvio nas lateroversões (à direita e à esquerda). Se, por exemplo, o desvio for maior em levoversão, a hipofunção predominante deve ser a do OSD ou a do RSE. Vem, então, o terceiro e último passo, com a inclinação da cabeça para a direita (maior estímulo ao OSD) ou para a esquerda (maior estímulo ao RSE), a conhecida manobra de Bielschowsky43. Todavia, convém ressaltar que o próprio Bielschowsky a propôs como específica (apenas) para diagnóstico de paresia do oblíquo superior.
De resto, há falhas conceituais em: (a) estudar posições diagnósticas de músculos cicloverticais testando suas funções por movimentos oculares no plano horizontal (segundo passo da manobra de Parks) e não pelos de suas posições diagnósticas clássicas, em que a inervação a eles dirigida é substancialmente maior; (b) considerar a função desses músculos na manobra de Bielschowsky, mas com a fixação dirigida pelo olhar em frente (terceiro passo da manobra de Parks), isto é, com estimulações “atenuadas” ao invés de “acentuadas”, tanto em um caso como no outro (segundo e terceiro passos da manobra); e, finalmente, (c) não especificação de qual dos olhos deva estar fixando em cada uma das condições. Assim, não há sustentação lógica nesse teste tão difundido (Parks), mas a maior falha dele será comentado a seguir (“pareamentos diagnósticos”).
Realmente, foi pelo uso disciplinado e constante desse teste para o diagnóstico de desvios cicloverticais que se encontraram exemplos demonstrativos de seus graves erros de concepção e aplicação44-46, corroboradas por outros autores47-48. Mas para mostrar a insuficiência do teste de Parks no diagnóstico de desvios verticais, talvez bastem os exemplos apresentados em curso de seu próprio grupo na American Academy of Ophthalmology49 (figura 2) e que servem, ao contrário, para apoio da proposta alternativa que sugeri (figuras 3 e 4).
A2) Pareamentos diagnósticos
Das leis de Hering e de Sherrington derivam duas conclusões práticas, absolutamente aceitas, para o diagnóstico de um músculo hipofuncionante (por paresia, ou por ação contida por forças de oposição) em um estrabismo e que são enunciadas:
a) O desvio é maior quando fixa o olho que contém o músculo (mais) hipofuncionante.
b) O desvio é maior no sentido da ação do músculo (mais) hipofuncionante.
Assim, por exemplo, em uma paresia do reto lateral direito o desvio é maior na fixação pelo olho direito, no olhar para a direita (abdução do olho direito).
De fato, essas duas regras “de ouro” para o diagnóstico dos estrabismos não estipulam que o desvio só exista nessas condições, mas que, nelas, ele é maior. Nem afirmam que só exista um músculo hipofuncionante. Daí decorre que, no caso específico, o desvio deva ser menor nas condições opostas, isto é, duas outras regras “de ouro” complementares são válidas:
c) O desvio é menor quando fixa o olho que não contém o músculo (mais) hipofuncionante.
d) O desvio é menor no sentido oposto ao da ação do músculo (mais) hipofuncionante.
Ou seja, na paresia do reto lateral direito, o desvio é menor na fixação pelo olho esquerdo e no olhar para a esquerda. Entretanto, essa condição é, precisamente, aquela em que um desvio causado por paresia do reto lateral esquerdo seria maior. E na condição de paresia do reto lateral esquerdo o desvio é menor (no olhar para a direita, com a fixação do olho direito) justamente quando e onde, se houvesse paresia do reto lateral direito ele seria maior. Em outras palavras, esses dois músculos (RLD e RLE) formam um par diagnóstico em que as condições em que eles devam ser máxima e minimamente estimulados se antagonizam.
De fato, em um esodesvio o(s) músculo(s) hipofuncionante(s) (por paresia ou contenção) deve(m) ser o RLD e, ou o RLE. Bastará, pois, estudar duas condições diagnósticas, a do RLD (desvio no olhar à direita, fixando o olho direito) e a do RLE (desvio no olhar à esquerda, fixando o olho esquerdo). Se houver uma diferença clinicamente significativa entre elas, a do desvio maior apontará o músculo cuja ação é mais deficiente. Se as duas forem relativamente parecidas, não se pode concluir que haja a predominância de uma hipofunção sobre outra.
Similarmente, para um exodesvio o(s) músculo(s) hipofuncionante(s) (por paresia ou contenção) deve(m) ser o RMD e, ou o RME. Bastará, pois, estudar duas condições diagnósticas, a do RMD (desvio no olhar à esquerda, fixando o olho direito) e a do RME (desvio no olhar à direita, fixando o olho esquerdo). Se houver uma diferença clinicamente significativa entre elas, a do desvio maior apontará o músculo cuja ação é mais deficiente. Se as duas forem relativamente parecidas, não se pode concluir que haja a predominância de uma hipofunção sobre outra.
Idêntico procedimento poderia ser tomado para os desvios verticais, nos quais predomina a ação dos retos verticais. Em um desvio D/E, as condições a de teste seriam as do RID (desvio no olhar para baixo, fixando o olho direito) e do RSE (desvio no olhar para cima, fixando o olho esquerdo). E, em um desvio E/D, as condições de teste seriam as do RIE (desvio no olhar para baixo, fixando o olho esquerdo) e do RSD (desvio no olhar para cima, fixando o olho direito).
Mas e os oblíquos? A melhor condição de seus estudos é a das torções oculares, cuja provocação é difícil (não são voluntariamente suscitados; e, por vias reflexas, suas magnitudes são pequenas), além de difícil constatação (rotação em torno do eixo ocular longitudinal) e mensuração (prismas não são, nelas, aplicáveis). Na prática clínica decidiu-se, então, por avaliar a função dos músculos oblíquos por seus componentes horizontais (exemplo, a variação do desvio horizontal no plano sagital, as chamadas variações horizontais em “A” ou em “V”) ou, principalmente, os verticais. Os desvios verticais causados pelos músculos oblíquos não são muito pronunciados; mas são maiores em adução do que em abdução (em que a predominante ação dos retos verticais é ainda maior), criando-se, assim, uma opção para seus estudos. Portanto, um desvio causado pela hipofunção do oblíquo superior direito (OSD), isto é, D/E, maior no olhar para baixo e à esquerda na fixação pelo olho direito, é menor no olhar para cima e à direita na fixação pelo olho esquerdo, condição que se refere ao maior desvio originado por uma hipofunção do oblíquo inferior esquerdo (OIE). Essas duas condições antagônicas correspondem, pois, ao par diagnóstico OSD-OIE no desvio D/E. Nesse desvio há também o par dos retos verticais (RID e RSE), enquanto no desvio E/D dois pares diagnósticos (o dos oblíquos e o dos retos verticais) devem ser estudados (Tabela 1).
A maior estimulação pode, todavia, ser ainda mais acentuada, se a estimulação labiríntica à torção ocular for desencadeada pela adequada inclinação da cabeça. De fato, na inclinação da cabeça para a direita são estimulados os inciclodutores do olho direito (OSD e RSD) e os exciclodutores do olho esquerdo (OIE e RIE). Na inclinação para a esquerda, são estimulados os inciclodutores do olho esquerdo (OSE e RSE) e os exciclodutores do direito (OID e RID). Da combinação da estimulação de um músculo pela rotação ocular à sua “posição diagnóstica” clássica com a da inclinação da cabeça apropriada, resultou a proposta de estudo das posições diagnósticas com a cabeça inclinada 50-54 (figuras 3 e 4).
Como autor dos conceitos sobre os métodos diagnósticos em estrabismos, principalmente o dos pares diagnósticos, fui distinguido com o convite para sua apresentação na Conferência I.S.A.-C.L.A.D.E. no Congresso conjunto dessas duas entidades55.
A3) ROTAÇÕES DE SENTIDO OPOSTO À ORIGINAL
Outra aplicação simples e direta do conceito de que todos os músculos podem “produzir” todas (quaisquer) ações é a de, por exemplo, o uso de forças do reto medial (isto é, um músculo ao qual se já atribuiu a pura ação de adução) para produzir abdução. De fato, supondo-se uma perda completa da ação do músculo reto lateral (quer por sua ausência anatômica, quer por sua paralisia inervacional), o princípio de recuperação de sua ação é o de se “ancorar” o olho à órbita, em uma posição de abdução (à qual se pretende que o olho chegue) por um artefato distensível (uma mola, um elástico). Pelo estímulo inervacional do reto medial o olho pode ser trazido, em rotação centrípeta, à posição primária (e até ultrapassá-la, em maior adução). Por esse movimento de adução centrípeta, acumula-se no artefato elástico que se distende uma energia potencial (originada do reto medial) que pode, depois, ser recuperada promovendo abdução (centrípeta e, ou centrífuga, dependendo do ponto de onde ela começla) quando o reto medial se relaxar. A fundamentação teórica dessa ideia foi desenvolvida em uma sequência de publicações56-62 e sua aplicação explorada em estudos meus, em Ribeirão Preto63, 64 e de Collins e colaboradores em San Francisco65-67, cuja diferença básica era, apenas, a do sentido da tração. Realmente, no Smith-Kettlewell Eye Research Instititute (S.K.E.R.I.) preferia-se uma tração “direta” pelo artefato, isto é, para produzir abdução, o agente de tração era fixado na esclera temporal à frente do centro de rotação ocular e, na órbita, atrás dele, do lado temporal; uma técnica com a qual comecei (quatro casos operados em 1982 e um em 1983, com implantação de molas de aço, helicoidais)63 (figura 5). Passei depois a usar uma tração “reversa” e dupla : o agente de tração (fios de silicone) era fixado à esclera do lado medial, à frente do centro de rotação ocular e, na órbita, à frente do centro de rotação ocular, do lado temporal (por dois fascículos, um superior e outro inferior)64.
É todavia curioso como, na paixão pelo resgate das duções, os resultados monoculares (aliás, bons e confirmatórios dos princípios) nos cegaram, todos, por tanto tempo a ponto de, lá e cá, não percebermos outro princípio básico. Convidados (Scott, Miller e Collins, pelo S.K.E.R.I.; e eu) a participar de uma reunião fechada e de seletíssimo nível sobre a engenharia dos movimentos oculares, em San Francisco; e como os únicos expositores da seção de “Próteses oculares”, senti-me na obrigação de apresentar um aprofundamento teórico sobre o tema, mais condizente com os scholars presentes, abordando os movimentos binoculares, as versões68. E para meu próprio escândalo, percebi, pela teoria (e não por uma simples observação) que enquanto o movimento de adução desse olho tratado é obstado (pela contenção elástica), no outro (normal) as leis de Hering e de Sherrington se aplicam como a natureza manda, traduzindo-se por um movimento mais amplo. Daí se pode concluir que não há possibilidade de movimentos binoculares conjugados. (A menos que se faça um --- impensável --- defeito “conjugado” no olho “bom”, para atrapalhar sua adução --- isto é, paralisando a correspondente adução do olho normal --- e sua respectiva correção por um artefato elástico.) Meu consolo foi ter percebido isso antes dos pesquisadores do S.K.E.R.I. que, naquele Simpósio, ao começarem sua exposição69 (logo depois da minha) já a lamentaram como ultrapassada... Encerrava-se a linha de pesquisa, mas permanecia o conceito de um músculo poder prover uma rotação em sentido oposto ao da sua normalmente esperada.
B) Forças passivas
Com exceção do exame de uma possível contenção rotacional aos movimentos oculares pela “prova das duções passivas” para confirmá-la (ou excluí-la), não se considerava que as forças passivas exercessem um papel mais importante sobre o equilíbrio oculomotor. Mas pelo estudo de movimentos oculares produzidos pelas forças acumuladas durante essas duções passivas, na ausência de tonicidades musculares (forças ativas), --- por exemplo, sob anestesia geral, durante uma cirurgia para correção do estrabismo, ou seja, pelo estudo das rotações centrípetas, ou rotações (passivas) de retorno “elástico”, ou spring-back rotations70, --- inaugurava-se um novo método para conhecimento das forças atuantes no equilíbrio oculomotor. Assim, ao invés da simples avaliação da “resistência” ao deslocamento ocular centrífugo (ou como sua complementação) passava-se à análise do movimento centrípeto. A cirurgia, antes apenas considerada como um procedimento terapêutico, passava a ser, também, diagnóstica, aperfeiçoando o conhecimento dos problemas causadores do desvio dos eixos visuais e ajudando a programar melhor suas correções. Na fundamentação desse método71 é bem provável que o termo sobre “forças passivas” tenha sido mencionado pela primeira vez.
O ponto de equilíbrio passivo (isto é, a medida do desvio sob anestesia geral) determina-se pela média das posições finais dos movimentos centrípetos de sentidos opostos (por exemplo, a partir de pontos simétricos de abdução passiva e de adução passiva). Desse modo, por exemplo, para um desvio com a medida (no estado de vigília) de +20°, começava então a se fazer a distinção entre um desvio “puramente tônico” (quando, sob anestesia, a medida do desvio tornava-se 0°), um “mecânico” (quando, sob anestesia, o desvio permanecia idêntico, +20°) e um “misto” (quando, sob anestesia, o desvio ficava entre 0° e +20°). Mas, além disso, pela observação da amplitude e, ou da velocidade dos movimentos de retorno “centrípeto” (variáveis, geralmente, diretamente proporcionais), poderiam ser inferidas informações sobre a capacidade contrátil dos músculos (relacionadas à sua elasticidade). Se o ponto de equilíbrio passivo fosse 0°, mas resultante de rotações centrípetas terminadas em +10° (a partir da adução centrífuga) e -10° (a partir da abdução centrífuga), a condição deveria ser considerada como diferente de outra medida com mesmo ponto de equilíbrio passivo (0°), mas obtido por média de rotações centrípetas terminadas em +20° e -20°. No primeiro caso (rotações centrípetas maiores) o significado seria o de músculos mais “elásticos” ou tensos e que, por isso, responderiam mais a procedimentos sobre ele realizados (debilitamentos ou fortalecimentos de sua ação); e, portanto, com resultados cirúrgicos maiores do que os realizados por idênticos procedimentos no segundo caso (músculos menos elásticos, ou frouxos). O inequívoco enriquecimento prognóstico de resultados desses procedimentos operatórios (mas diagnósticos) mudou a noção de se realizar a cirurgia apenas com base em um plano prévio e seguir adiante sem modificações. Em suma, pelas informações peroperatórias baseadas nas forças “passivas” atuantes, passou-se a nortear não apenas a escolha dos músculos a serem submetidos a intervenções mas, também, a quantidade em que elas devessem ser feitas.
B1) A elasticidade muscular como explicação de resultados cirúrgicos
Uma cirurgia interessante introduzida nessas épocas foi a fadenoperation72 (a cirurgia do fio), pela qual se prendia o olho à esclera, longe de sua inserção anatômica, sem que esta fosse realmente alterada. Assim, a cirurgia equivalia, teoricamente, a um recuo da inserção (a “nova”, relativamente à original) mas de “magnitude” igual à de uma ressecção de mesmo valor (a tensão muscular não deveria se modificar com o procedimento). O propósito era o de se reduzir o arco de contato funcional corrigindo, por exemplo, um esodesvio na fixação para perto, sem alterar o equilíbrio oculomotor na fixação para longe. O problema era o de que, embora inesperadamente, ocorria, também, modificação do desvio na fixação para longe. E com valores de correção dos desvios que, aparentemente, não guardavam relação com a “magnitude” da operação (isto é, da distância da inserção original em que a nova sutura do músculo à esclera fosse feita).
Em 1981, convidado para discutir a apresentação de De Decker, provavelmente o mais renomado cirurgião de Fadenoprations e com suas maiores casuísticas, no Simpósio do Wenner-Gren Center (Stockholm)73, sugeri que a explicação das aparentes discrepâncias devesse estar no modo como a cirurgia era feita. De fato, não se fazia a sutura com o olho em posição primária --- o que, efetivamente, não alteraria a tensão muscular --- mas tracionando-o para anteriorizar a região em que a sutura do músculo à esclera pudesse ser realizada mais facilmente. Inequivocamente, então, o músculo se distendia de modo que o ponto de sua inserção à esclera correspondesse a um recuo efetivamente maior que o aparente. Essa diferença dependia, basicamente, tanto da quantidade com que o olho fosse girado, quanto da elasticidade do músculo (figura 6)74.
B2) Influência de outras estruturas perioculares sobre as rotações oculares
A influência das estruturas envolvendo os MOE e entre eles (fáscias e membranas intermusculares) sobre as ações musculares foi, igualmente, objeto de considerações. De fato, os cálculos teóricos sobre cada uma delas (correspondendo à rotação ocular realizada desde a posição primária do olhar a uma direção específica no espaço)34-39 pressupunham que, no movimento ocular requerido, o músculo pudesse deslizar livremente sobre a esclera, ocupando sempre o arco de um círculo máximo (a menor distância entre dois pontos na superfície de uma esfera). Ora, esse deslocamento, todavia, é limitado pelas fáscias e membranas intermusculares, em maior, ou menor grau. Antecipando o conceito do que atualmente se discute como polias musculares, mostravase pictoricamente, já em1978, “o efeito de estruturas de contenção sobre a direção da força de aplicação de um músculo” (figura 8, p.15)75, concluindo-se que “a secção de membranas intermusculares possibilitaria que o músculo mais livremente deslizasse sobre o globo ocular, durante as rotações deste, modificando a distribuição de forças pelos diferentes planos.”(Figura 7).
Essa noção do ponto de aplicação da força sobre o olho voltou a fazer parte de uma apresentação mais genérica sobre a cinética ocular (em um novo Wenner-Gren International Symposium, Stockholm, 1987). De fato, dependendo de como a secção de membranas intermusculares seja, ou não, realizada, o sentido da ação de um músculo pode ser invertido76. E na Conferência Magistral do Congresso do XXV Aniversário da Sociedade Espanhola de Estrabologia (Madrid, 1996), embora isso correspondesse, apenas, a um ponto menor da apresentação, novos elementos gráficos foram adicionados, para mostrar como a integridade, ou não, de tais membranas (agindo como “polias”) poderia influenciar o posicionamento de um músculo sobre o olho, tanto mudando sua ação nas diferentes direções do olhar, como, também, o efeito de suas eventuais transposições77,78 (Figura 8).
Mas na apresentação de 1987 em Stockholm76, foram também discutidos conceitos como o do “arco de rotação” para substituir a noção ainda prevalente do “arco de contacto” também já antecipado61; assim como a influência que translações oculares, ainda que diminutas, exercem sobre as rotações oculares, limitando-as.
C) Aplicações clínicas
Uma síntese dos mecanismos de ação de vários procedimentos cirúrgicos de correção dos estrabismos foi apresentada em uma conferência do XII Congresso do CLADE (Buenos Aires,1996)78. Os diferentes métodos e seus fundamentos são comentados quanto a:
A) Alterações no plano de ação muscular
1) Alterações da posição relativa do músculo e do olho;
2) Alterações do comprimento muscular;
3) Expansor rígido;
4) Mioescleropexias (fadenoperations);
5) Associação de ressecção e suturas em rédea;
6) Novas combinações.
B) Alterações do plano de ação muscular
1) Transposições;
2) Transposições relativas;
3) Inserções oblíquas.
C) Alterações do momento rotacional
1) Alterações da força contrátil;
2) Alterações do braço do momento;
3) Alterações do ângulo de aplicação da força.
D) Efeitos de estruturas não musculares
1) Influência das ligações entre músculo e olho (foot-plates)
2) Influência da ligação entre músculos (membranas intermusculares);
3) Influência de ligações entre a órbita e o olho ou seus músculos;
4) Artifícios contensores.
A diferença entre “alterações no plano de ação muscular” e “alterações do plano de ação muscular” pode ser dada pela quantidade com que se faz um recuo de inserção. De fato, um simples recuo, sem mudança do plano de ação muscular (figura 9) acarreta possíveis mudanças da ação muscular75.
Entre os outros vários métodos, alguns, originais, vale comentar, o da inserção bífida de um músculo (e simétrica em relação a seu plano original de ação), para efeito de debilitamento da ação muscular por meio da redução do braço do momento e do ângulo de aplicação da força79 (Figura 10).
Uma proposta de aumento do braço de aplicação da força é também cogitada como possibilidade de alteração do momento rotacional, comentando-se as possíveis vantagens e desvantagens dessa técnica. Nessa publicação, aparece como proposta de alteração do comando inervacional (para alteração da força contrátil do músculo) a menção ao uso da “atropina em diluições de 0,01 a 0,05% para produzir cicloparesias e assim aumentar a relação CA/A) (Bicas et al., 1978)”.80 Realmente, remonta a 40 anos o uso dessa diluição da atropina, provavelmente a primeira vez em que ela foi utilizada na clínica oftalmológica... Hoje muito usada, mas para outra finalidade (a prevenção da progressão da miopia).
Outra revisão analítica apresentada no Smith-Kettlewell Oculomotor Symposium, realizado durante esse Congresso do CLADE (1996), abordava os conceitos de “elasticity, stiffness and other terms” e suas correspondentes aplicações clínicas81.
D) Forças Dissipativas
Rotações oculares são determinadas por aumentos ou reduções das tonicidades dos músculos oculares externos (respectivamente em suas contrações e, ou relaxamentos) sempre mediadas pelos estímulos do sistema nervoso central. As forças daí originadas, as chamadas forças ativas (A) seguiriam indefinidamente se não existissem outras, para contrabalançá-las e determinar o fim do movimento, as chamadas forças passivas (P), ou de reação. Músculos e outras estruturas elásticas, alongadas durante uma rotação centrífuga opõem-se à continuidade dela e determinam sua parada, acumulando a energia cinética do movimento, sem a necessidade de que novos estímulos inervacionais sejam acionados para tal. O balanço então estabelecido mantém-se enquanto durar o comando para contração do(s) músculo(s) estimulado(s). No relaxamento deste(s), as forças passivas produziriam a rotação ocular centrípeta (a “springback rotation”), passando a centrífuga até que, novamente, as estruturas elásticas de resistência à continuidade dela (rotação centrífuga) determinasse sua estase e o início de novo ciclo, perpetuando um movimento pendular, harmônico.
Contudo, não é assim que as coisas ocorrem: para uma abdução de certo valor é necessário o estímulo ao reto lateral em determinada magnitude, tal que a rotação seja limitada pelas forças passivas de oposição; e quando o relaxamento se dá, o movimento centrífugo termina, “espontaneamente”, após a rotação centrípeta, sem que a centrífuga se inicie e sem que novo estímulo inervacional seja acionado para a estase. A explicação é simples: além das forças ativas e passivas, o sistema oculomotor dispõe de forças dissipativas (D), que consomem a energia cinética, transformando-a em calor (no atrito entre as superfícies em movimento e por distensão de tecidos elásticos) e em deformações inelásticas. A equação chega a ser simples: a energia acumulada pelas forças passivas é a diferença entre a das forças ativas e as dissipadas (P = A – D) e a do movimento de retorno (“spring-back rotation”) iguala-se à que é dissipada (P = D). Assim, a magnitude das forças dissipativas é, normalmente, de cerca de metade da força original imprimida pelo músculo acionado pelo estímulo inervacional (A = 2 D).
Além da quantitativa, a importância qualitativa das forças dissipativas (D) é óbvia: são elas que “limpam” o sistema oculomotor das forças geradas por um dado estímulo inervacional (A), permitindo que um novo ocorra, sem necessidade de qualquer outro comando de intervenção. São “destrutivas” e (ou, pois) “renovadoras”... A ideia de que possam ser aproveitadas para “destruir” rotações (indesejadas), como as de nistagmos é imediata. Assim foi teorizado82 e em sequência se partiu para experimentos que a pudessem substanciar. A proposição que fundamentou a Tese de Doutorado de André A.H. Jorge que então se desenvolveu82,83 e da qual tenho a honra de ser o orientador, mereceu ser agraciada com o prêmio anual do C.B.E. (Prêmio Oftam-C.B.E., 2001). Novos trabalhos se seguiram84-87 (duas outras Teses de Doutorado sob minha orientação)85,87, também com prêmio Waldemar e Rubens Belfort Mattos, 2010 (para o melhor trabalho publicado nos Arquivos Brasileiros de Oftalmologia do ano precedente)86.
E) Forças de campo magnético
Em síntese elementar, as causas de um estrabismo podem ser resumidas a duas: a de contenções mecânicas da rotação ocular (por exemplo, a produzida por fratura de assoalho da órbita, a da síndrome de Brown, etc.) e a de deficiências funcionais da inervação (paresias e paralisias oculomotoras) e, ou de reação muscular (miopatias, avulsões musculares). No primeiro caso, impõe-se a tentativa de desfazimento da contenção. No segundo (inervacional), o equilíbrio oculomotor pode ser, eventualmente, restaurado por debilitamentos de ações musculares de ação oposta (recuos de inserção, aplicações de toxina botulínica, miotomias ou miectomias) e, ou por aumento de forças rotacionais pré-existentes (encurtamentos musculares, reposição escleral de músculos desinseridos, maior convergência por estímulo à acomodação). Os princípios de transposições musculares para “restaurar” uma rotação perdida (por exemplo, a cirurgia de Hummelschein88, ou suas variantes), não resistem a argumentos de que a resposta buscada seja, apenas, de caráter mecânico, “passivo” (que, de resto, poderia ser obtida por procedimentos tradicionais, como o do encurtamento do músculo paralítico), sem reaprendizado de comandos (por exemplo, o da abdução, pelos músculos retos verticais, sinergistas da adução) e com produção de maiores desequilíbrios (desvios verticais, indesejados, nas rotações oculares no plano horizontal)89-90.
Procedimentos pelos quais possam ser introduzidas novas forças no sistema oculomotor (como, por exemplo, o de estimulação elétrica de músculos paréticos ou paralíticos, por meio de sinais captados pelas rotações do olho “normal”) foram já cogitados, mas com enormes dificuldades técnicas, com possíveis lesões teciduais do músculo afetado causadas pelas estimulações e sem qualquer solução prática que encorajasse o prosseguimento dos estudos. Alternativa teoricamente possível seria a de aproveitamento de forças “naturais” suficientemente fortes (como a de campos magnéticos), com a vantagem de que tais forças podem ser “reguladas” por sinalizações provindas do outro olho; ou, simplesmente, geradas por pequenos ímãs. Conjeturas sobre o assunto foram inicialmente feitas em 1985(62) e, depois, pela falência teórica da aplicação de artefatos elásticos para restabelecer rotações oculares perdidas 68. Seguiram-se novos estudos91-97 e as primeiras intervenções em pessoas foram relatadas98-99, com reconhecimento de mérito pelo Prêmio Oftam-C.B.E. 1997(98). Aperfeiçoamentos experimentais foram descritos100-103e duas Teses de Doutorado relativas ao assunto, sob minha orientação foram concluídas104,105.
Com a aposentadoria da F.M.R.P.U.S.P. e pela convicção de que minha energia laboral não me permitiria chegar às quantidades e qualidades da produção “exigida” pelos critérios de avaliação dos cursos de pós-graduação, optei por me desligar da participação formal de ensino nesse sistema, apesar dos distintivos e generosos convites de meus colegas de Departamento para que nele continuasse --- o que muito me honrou. Assim, interrompi os estudos experimentais nessa linha de pesquisas que, me parece, representam uma promissora solução, não apenas para a estabilização de nistagmos mas, principalmente, para a estabilização de resultados cirúrgicos de correção dos estrabismos. Essa hipótese foi debatida em simpósio internacional no Smith-Kettlewell Eye Research Institute (2012)106 ensejando uma abordagem sobre possível aplicação clínica de maior extensão107. (Este artigo foi citado em publicação recente do Reino Unido, que reassume a proposta para a correção de nistagmos, reproduz em, praticamente, sua totalidade nossos trabalhos originais e apresenta mais um bom resultado da técnica108.)
COMPLEMENTOS
Certamente, os trabalhos da “estrabismologia que vivi” não se limitam a esses referidos. A vida acadêmica nos antepõe desafios múltiplos e vários outros estudos foram compartilhados, principalmente por minhas orientações a Teses de Doutorado, Dissertações de Mestrado, participações em livros, etc. Cada um contribuiu para aprendizados que foram se somando. Mas é interessante notar que um assunto que mereceu muito carinho (o do registro objetivo dos movimentos oculares pela eletro-oculografia), que constituiu minha tese de Livre-Docência109, que se aplicou às primeiras observações das “spring-back rotations” (71), quando elas começaram a ser pesquisadas no Smith-Kettlewell Institute of Visual Sciences (1974), que consubstanciou várias apresentações em congressos internacionais110-115 e publicações116,117, que foi tema da primeira Tese de Doutorado que orientei118 e distinguido como assunto de cursos ou conferências, haja, depois, sido menos valorizado, mesmo sem perder sua importância. Por outro lado, estudos de diversos matizes foram objeto de outras Dissertações de Mestrado ou Teses de Doutorado (além das já citadas), tais como: métodos diagnósticos durante a cirurgia119-123, estudos da sensorialidade mono e binocular124,125 e, ou, psicofísicos126,127, métodos clínicos no diagnóstico dos estrabismos128-133, uso de toxina botulínica134,135, suturas reajustáveis136, adesivos tissulares137, outras técnicas cirúrgicas138-142, estudo de células satélites143 e, felizmente, alguns mais, com distinguidos colegas. A diversidade desses temas atesta parte da evolução que o estudo dos estrabismos apresentou em todos esses anos.
É proverbial a afirmação de que “o exercício da Medicina é ciência e arte”. E, talvez, para o da área dos estrabismos, sem que nele se perca o caráter de ciência, prevalece o da “arte. De fato, para mesmos problemas, diferentes soluções são propostas, com razoável quantidade de bons resultados em cada uma delas, confundindo as melhores argumentações sobre por que isso possa acontecer.
Aliás, é paradigmática a conclusão do Simpósio sobre estrabismos do XXI Congresso Brasileiro de Oftalmologia (Recife, 1981), que tive a honra de organizar e coordenar (e pelo qual me foi outorgado o Prêmio Carmem Caldeira, do Centro Brasileiro de Estrabismo). Dei-lhe o título “Conhecimentos e procedimentos sobre motilidade ocular e funções correlatas considerados como indiscutíveis”, com o objetivo de catalogar o que pudesse haver de “certezas” entre 17 estrabismólogos brasileiros, então reconhecidos como mais experientes e destacados. Foi-lhes pedido, por correspondência, que encaminhassem afirmações que considerassem absolutamente corretas, e que não pudessem sofrer reparos. O total das “certezas” então encaminhadas foi grande, superior a quinhentas (embora muitas delas tivessem a mesma essência). Em seguida, essas afirmações “indiscutíveis” foram agrupadas conforme seus temas e, sem menções sobre quem as houvesse formulado, a lista total foi redistribuída a todos os participantes do inquérito, com a solicitação de que cada um atribuísse valores a cada uma, entre “dez” (quando a afirmação fosse julgada completamente verdadeira) e “zero” (quando fosse julgada absolutamente errada). Esperava-se que os autores das afirmações pudessem (obviamente) atribuir “dez” às suas, respectivas, mas, também a algumas formuladas por outros colegas de modo que as que restassem unanimemente acolhidas com a nota máxima representassem o conjunto de “certezas “ do C.B.E. Surpreendentemente, sobrou apenas uma que, basicamente, afirmava ser preferível prevenir a ambliopia do que tratá-la, praticamente, quase uma obviedade... Claro que o método de obtenção dessas verdades é em si mesmo vulnerável a críticas, pois quando alguém afirma, por exemplo, que “o reto medial é um músculo adutor”, acreditando ser essa uma verdade indiscutível, outro pode julgar que ela seja questionável, --- pois esse músculo teria, também, ações no plano sagital (verticais) quando o olho estivesse fora do plano horizontal, --- dando-lhe, então, uma avaliação abaixo da máxima. De qualquer modo, é uma razoável representação da falta de consenso senão em conceitos, pelo menos na linguagem em que eles são postos.
Na verdade, nem sequer a própria definição do que seja “estrabismo” é consensual e, ao contrário, suscita controvérsias interessantes. Por exemplo, é frequente conceituar-se o estrabismo como o desalinhamento dos eixos visuais principais (“foveais”) relativamente ao ponto do espaço sobre o qual eles deveriam se cruzar. Essa parece ser a concepção mais usual e, não obstante, insuficiente: os eixos visuais podem se cruzar sobre o ponto referencial do espaço mas com inclinações entre os respectivos planos horizontais (ou sagitais) do olho (isto é, da visão), ou seja, sem “desvios horizontais” e,ou verticais”, mas com desvios torcionais... Além disso, pode haver bom posicionamento binocular para um (ou mais) ponto(s) do espaço, mas não sobre outros (o que impõe um condicionamento espacial ao conceito). E, ainda, podem faltar os eixos visuais (cegueiras) e, mesmo assim, falar-se em “estrabismo” (desvios de outros eixos oculares tomados como referência). Enfim, “eixo visual” é referência conveniente (necessária?) para definir estrabismo, mas insuficiente e, por vezes, impertinente.
Talvez seja purismo pretender que a praticidade do exercício diagnóstico e terapêutico dos estrabismos se subordine a conceitos. Mas é quase filosoficamente que, na Conferência Magistral do XXV Congresso Brasileiro de Oftalmologia144 (Belo Horizonte, 2009), --- um privilégio concedido ao Presidente do C.B.O. do exercício anterior --- comento a distância entre a teoria (o “como deve ser”) e a prática (o “como é”) de nossa área de estudos. Discuto tópicos como “a falta de rigor formal (que) deveria claramente delimitar a extensão e o significado do termo”, “a falta de um entendimento comum sobre quais fatores devam prevalecer na construção dessa exigência elementar” e a falta de “limites absolutos entre estrabismo e normalidade” ; e analiso os aspectos conceituais da caracterização dos estrabismos (definição e seus elementos, a precisão das medidas e seus limites, os sistemas referenciais de coordenadas, a posição primária do olhar, os movimentos oculares no espaço, as assimetrias posicionais “normais” do olho no espaço) e os aspectos operacionais dessas caracterizações (as dificuldades para o estabelecimento prático da chamada “posição primária do olhar” --- um conceito que assumo como apenas teórico ---; e os métodos de quantificação das medidas do estrabismo). E termino com dez “conclusões” para a convivência pragmática com tais “dissonâncias epistêmicas”.
Sem dúvida, poder acompanhar como os músculos se posicionam sobre o olho durante os movimentos oculares (por imagens de ressonância nuclear magnética); injetar diretamente sobre eles substâncias que reduzam, ou aumentem, suas ações; estimular, ou deprimir, funções neuronais (motoras e sensoriais), e desenvolver outros conhecimentos provindos de trabalhos experimentais, trarão progressos enormes sobre a prática diagnóstica e terapêutica dos estrabismos. Mas, concomitantemente, para que a “estrabismologia” se converta cada vez mais em ciência, a revisitação a seus conceitos básicos deve ser aprimorada. De minha parte, é o que (acho) posso fazer: em um dos meus mais recentes artigos145, aprofundo considerações já antes apresentadas146 sobre uma dessas “dissonâncias”, --- a imprecisão de nossa unidade básica de mensurações angulares (a dioptria-prismática) --- para torná-la mais tolerável...
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* Adaptação de Conferência Magna de Encerramento do Curso de Formação de Especialistas do Instituto Strabos (São Paulo), proferida no Instituto Strabos em 22/11/2017 (“O estrabismo que vivi e o estrabismo que vocês viverão”, tema proposto pelos organizadores do evento).
** Professor Titular Senior, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Av. Bandeirantes, 3900 – Monte Alegre – 14.049-900 -Ribeirão Preto (SP), Brasil.
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: não aplicável
Conflito de interesses: declaram não haver
Recebido em:
23 de Agosto de 2018.
Aceito em:
5 de Setembro de 2018.