Francyne Veiga Reis Cyrino
DOI: 10.17545/eOftalmo/2024.0011
A população mundial está envelhecendo. O aumento da sobrevida vem acompanhado de doenças debilitantes, tanto sistêmicas quanto oculares em decorrência das mais diversas causas, incluindo-se entre elas catarata, degeneração macular relacionada a idade (DMRI), retinopatia diabética, glaucoma, trauma, oclusão de artéria central da retina, entre outras. Atualmente são cerca de 45 milhões de pessoas cegas e 2,2 bilhões de deficientes visuais em todo o mundo1,2. A incapacidade visual traz não somente consequências pessoais, familiares e financeiras, como também pode vir acompanhada de uma condição frequentemente desconhecida dos profissionais da saúde, chamada síndrome de Charles Bonnet (SCB).
A SCB se caracteriza pela manifestação de alucinações visuais, em indivíduos saudáveis psicologicamente, que apresentam baixa visual significativa em decorrência de doenças oftalmológica3. Tem caráter benigno, contudo, traz consigo grande ansiedade aos pacientes, que, conscientes da irrealidade das alucinações, muitas das vezes são erroneamente diagnosticados como doentes psiquiátricos ou em processo de demência4.
O termo SCB foi cunhado em 1967, por De Morsier, para caracterizar este quadro de alucinações visuais em pacientes idosos com função cerebral intacta5, fazendo alusão aos relatos do filósofo suíço Charles Bonnet (1720-1792), que, em 1760, relata os achados de alucinação percebidas por seu avô, Charles Lullin, de 89 anos. Devido a catarata avançada, Chales Lullin apresentava baixa visual e referia visões de homens, mulheres, pássaros e construções que mudavam de forma, de tamanho e lugar, e o mesmo tinha consciência de que estas visões não eram reais. Anos mais tarde, o próprio Charles Bonnet apresentou alucinações semelhantes a do seu avô, em decorrência a baixa visual secundária catarata3,5,6.
A alucinação visual pode ocorrer em diversas situações clínicas e é definida como uma percepção visual na ausência de estímulo externo, podendo ser simples, compostas de imagens abstratas, flashes de luz, linhas e formas geométricas ou complexas, ondem ocorrem como imagens como de pessoas, animais, plantas ou objetos3,4-7. Podem durar de segundos a dias, podendo ocorrer todos os dias, mensalmente ou em episódios ao longo do ano. A frequência é também variável, podendo ser episódicas, periódicas ou contínuas. As alucinações episódicas são geralmente únicas e duram de dias a meses e geralmente se resolvem completamente. As contínuas são persistentes e não desaparecem3,5,6. Não está bem estabelecido se há gatilhos desencadeadores como fadiga, stress ou níveis de iluminação, mas, nos pacientes muito incomodados, o simples fato de fechar e abrir os olhos pode fazer com que a alucinação desapareça3,6.
A teoria da dor do membro fantasma, na qual a dor ocorre mesmo quando o membro foi removido é a teoria proposta para a SCB. Da mesma forma, os pacientes podem ter sensações visuais apesar de serem incapazes enxergar. A etiologia é variada, e, excetuando-se a cegueira congênita, a SCB pode ter origem em qualquer fator causador que acarrete em baixa ou perda visual e/ou que afete a via visual, estendendo-se do córtex visual até os olhos4-9 como catarata, opacidade corneana, degeneração macular relacionada a idade, glaucoma, retinose pigmentar, retinopatia diabética, neurite óptica, arterite temporal, oclusão venosa, alta miopia, infarto cerebral ou acidente vascular cerebral com acometimento do lobo occiptal5,6,10.
A hipótese mais aceita para explicar o mecanismo fisiopatológico do processo de alucinação visual na SCB é a desaferentação, que se refere à perda de neurônios aferentes responsáveis pela visão, geralmente devido a uma lesão na via visual. Essa perda causa hiperexcitabilidade no córtex visual, resultando em formação de imagens, neste caso, as alucinações visuais. Fatores como aumento na liberação de neurotransmissores pré-sinápticos, aumento no número de receptores pós-sinápticos e diminuição na liberação de neurotransmissores inibitórios contribuem para esse fenômeno4,8,9,11,12,14. Os critérios diagnósticos para SCB também são controversos, sendo os mais utilizados: I) Presença de alucinação visual complexa, estereotipada, persistente ou repetitiva; II) Manutenção da consciência do caráter irreal do fenômeno; III) Ausência de alucinações em outras modalidades sensoriais; IV) Ausência de comprometimento cognitivo. Todos estes critérios são necessários para o diagnóstico da SCB8,11,15.
A SCB acomete principalmente os pacientes idosos, entretanto, pode ocorrer em qualquer idade. A média de idade dos pacientes, segundo os relatos da literatura, varia entre 70 e 80 anos3-12. Alguns estudos relataram a síndrome em pacientes mais jovens, entre 29-52 anos, não havendo predileção por sexo3,8,11,12,14. Ainda segundo os estudos, a prevalência varia entre 0,4% até 36%, valor este subestimado devido ao elevado número de subdiagnóstico, seja pelo desconhecimento desta condição ou pelo receio dos pacientes em reportarem as alucinações, com a preocupação de serem estigmatizados como pacientes psiquiátricos ou mentalmente incapazes16,17. Na década de 90, estudos já consideravam a SCB relativamente comum através da análise de estudos de prevalência no período e a estimativa é de que 1 a cada 7 pacientes idosos já tenham apresentado uma experiencia alucinatória, sendo as alucinações visuais simples mais comuns do que as complexas15,16.
Como visto, a falta de conhecimento e compreensão sobre SCB pode acarretar em diagnósticos equivocados de demência, Alzheimer e esquizofrenia, podendo fazer com que os pacientes sejam submetidos a tratamentos equivocados e impactando negativamente na qualidade de vida dos mesmos, seja pelo stress emocional relacionado a suposição de demência iminente ou quadro psiquiátrico, quanto pelo insucesso nas terapias instituídas que não servem de alivio para as alucinações8,9,11,12,16,17.
Até o momento, não há nenhuma terapia eficaz para SCB. E com o aumento da sobrevida e o envelhecimento da população, se faz fundamental o reconhecimento desta condição pelos profissionais de saúde em geral, para que o diagnóstico seja mais assertivo propiciando a correta orientação do paciente e de seus familiares. O reconhecimento da Síndrome de Charles Bonnet é fundamental para a redução da ansiedade, para o cuidado adequado e a boa relação familiar, impactando positivamente na qualidade de vida de todos os envolvidos.
REFERÊNCIAS
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INFORMAÇÃO DO AUTOR |
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» Francyne Veiga Reis Cyrino https://orcid.org/0000-0002-1892-6210 https://lattes.cnpq.br/0720130883701897 |
Fonte de financiamento: Declara não haver.
Conflito de interesses: Declara não haver.
Recebido em:
25 de Julho de 2024.
Aceito em:
5 de Agosto de 2024.