Mariana Miyazi1; Kauê Marques Ferreira1; Cristiano Urbano Becker2; Maria Vitória Vicente Cardoso3; Alexandre Xavier da Costa4
DOI: 10.17545/eOftalmo/2024.0005
RESUMO
A ceratopigmentação, conhecida comumente como tatuagem corneana, é uma técnica cirúrgica na qual micropigmentos de diferentes cores são injetados no seu estroma, visando alterar a sua coloração, atuando como uma importante ferramenta para fins estéticos. A ceratopigmentação teve o seu primeiro registro pelo filósofo Galeno, há muitos séculos, como uma estratégia utilizada para o tratamento estético de pacientes com leucomas. Nos últimos anos, grandes melhorias foram realizadas, tanto nas técnicas cirúrgicas quanto na qualidade dos pigmentos utilizados, que aumentaram notavelmente a segurança e a estabilidade destas substâncias na córnea, bem como melhoraram o resultado estético. Tal avanço colaborou com a ampliação de suas indicações, entre elas: (a) efeito cosmético em córneas patológicas; (b) efeitos funcionais, como em casos de fotofobia ou diplopia por aniridia, coloboma e outras patologias; e (c), mais recentemente, como efeito cosmético, em córneas saudáveis, a fim de simular uma mudança na cor dos olhos.
Palavras-chave: Ceratopigmentação; Opacificação corneana; Tratamento do leucoma.
ABSTRACT
Keratopigmentation commonly known as corneal tattooing, is a surgical technique where micropigments of different colors are injected into the stroma to change its color, and it is an important tool for aesthetic purposes. Keratopigmentation was first recorded by the philosopher Galen several centuries ago as an aesthetic treatment strategy for patients with leukoma. In recent years, major advancements in surgical techniques and pigment quality have remarkably increased the safety and stability of these substances on the cornea, with improved aesthetic outcomes. These advances have led to the expansion of its indications as follows: (a) cosmetic effects on pathological corneas; (b) functional effects such as in cases of photophobia or diplopia due to aniridia, coloboma, and other pathologies; and (c) more recently, cosmetic effect on healthy corneas, aiming to simulate a change in eye color.
Keywords: Keratopigmentation; Corneal opacification; Leukoma treatment.
INTRODUÇÃO
A ceratopigmentação (KTP), popularmente conhecida como tatuagem da córnea, é uma técnica cirúrgica na qual micropigmentos de diferentes cores são implantados no estroma corneano, a fim de alterar a sua coloração1.
Cicatrizes desfigurantes da córnea não só causam problemas oculares, como baixa acuidade visual e fotofobia, mas também podem causar manchas inestéticas que podem afetar as interações psicossociais do paciente. Diferentes opções de tratamento, como lentes de contato cosméticas e evisceração/enucleação com implantes orbitais e próteses oculares estão disponíveis para melhorar o aspecto estético2.
Com o passar dos anos, a KTP vem sendo utilizada para outras finalidades, entre elas: (a) efeito cosmético em córneas patológicas; (b) efeitos funcionais, como em casos de fotofobia ou diplopia por aniridia, coloboma e outras patologias; e (c), mais recentemente, como efeito cosmético, em córneas saudáveis, a fim de simular uma mudança na cor dos olhos3. O objetivo cosmético em córneas com opacidades permanece como a indicação mais comum e com mais trabalhos publicados na literatura internacional, mas ainda escassos no Brasil. A ceratopigmentação é uma opção comprovadamente benéfica, pois é uma cirurgia menos invasiva, com alta taxa de satisfação do paciente, um custo menor e maior acessibilidade potencial4.
DISCUSSÃO
A córnea leucomatosa normalmente gera estigmas sociais negativos para o paciente, que frequentemente busca alternativas para ocultar essa alteração e diminuir os efeitos psicológicos advindos dessa condição. Entretanto, as córneas com leucoma são patológicas e, muitas vezes, intolerantes a lentes de contato cosméticas ou próteses oculares, sendo comum a queixa de desconforto excessivo proporcionado pela superfície corneana irregular. Além disso, cirurgias de enucleação e evisceração são mutilantes e apresentam vários efeitos adversos relacionados principalmente à prótese5. Nesse sentido, a ceratopigmentação é uma alternativa promissora para a melhora estética de pacientes com opacidades corneanas (Figura 1).
As técnicas de KTP descrevem diferentes formas de implantar os pigmentos no estroma corneano e, de modo geral, podem ser divididas em superficiais e estromais, segundo Jorge L Alio3,6. As superficiais podem ser divididas em manual e automatizada, e as técnicas intraestromais são divididas em manual e assistidas por femtossegundo.
Na maioria dos estudos, os pigmentos costumam ser os mesmos utilizados nas tatuagens dermatológicas. Em alguns países, já existem registros de pigmentos específicos para a córnea, apresentando na sua composição diferentes quantidades de ácido lático, propanodiol e pigmentos micronizados de diferentes colorações6.
De acordo com a legislação brasileira, os equipamentos e tintas utilizadas em tatuagem devem ser registrados na Agência de Vigilância Sanitária, a fim de garantir a segurança ao usuário, evitando o uso de substâncias nocivas. As exigências estão na resolução RDC 55 de 20087, em que deve-se cumprir o requisito para registro, classificando o pigmento como produto implantável ou invasivo cirurgicamente de longo prazo.
No Brasil, como não existe um pigmento especificamente registrado para uso na córnea, para a realização da ceratopigmentação são usados os pigmentos registrados para o implante cutâneo, uma vez que eles são classificados como classe III na classificação de risco da Anvisa (produto implantável ou invasivo cirurgicamente de longo prazo)7. Eles devem ser, preferencialmente, com composição de origem mineral, indeléveis, facilmente esterilizáveis, não irritantes à córnea, opacos à luz e miscíveis em água, mas não solúveis8. Com as propriedades citadas acima, é possível ter um maior perfil de segurança para o uso do pigmento na córnea e maior estabilização no tecido.
Ceratopigmentação superficial manual
Essa técnica foi uma das primeiras utilizadas na KTP, antes do desenvolvimento dos dispositivos automatizados. Nela, utiliza-se a extremidade de uma agulha estéril, geralmente de 25-G, coberta com o pigmento que será utilizado. A seguir, várias punções tangenciais são efetuadas, sequencialmente, no estroma corneano, como uma micropuntura. Diferentes cores de pigmento podem ser utilizadas para atingir o efeito desejado.
Ceratopigmentação superficial automatizada
A KTP superficial automatizada apresenta o mesmo princípio da técnica anterior, colorindo a córnea através de punções tangenciais no estroma corneano. A diferença encontra-se na utilização de um dispositivo eletrônico que realiza de maneira automatizada as micropunções (Figura 2). De acordo com o dispositivo utilizado, pode-se configurar o comprimento da agulha que é exposto em cada punção, a frequência com que os disparos são realizados e a quantidade de agulhas utilizadas em cada disparo. Geralmente, os estudos publicados com esta técnica utilizam as agulhas de 3 a 5 pontas para a simulação da íris e 1 ponta para a simulação da pupila e da área limbar9 (Figura 3).
Ceratopigmentação intraestromal manual
Essa técnica apresenta como conceito base a realização de uma dissecção lamelar superficial da córnea, com aplicação intraestromal direta de pigmento (Figura 4). A área central corneana, que irá simular a pupila, pode ser delineada com caneta dermatográfica, e posteriormente uma incisão arqueada de 3mm e cerca de 150 micrômetros de profundidade é realizada às 10h, seguida da dissecção de uma bolsa central e da instilação de pigmento preto (Figura 5). Para a simulação da cor iriana, incisões corneanas radiais às 3, 6, 9 e 12h, do limite externo da área pupilar tingida de preto até a periferia da córnea, são realizadas, de maneira mais profunda - com cerca de 200 micrômetros - seguido da instilação do pigmento com a cor de acordo com a cor do olho contralateral do paciente8. Visto que o corante é aplicado diretamente no estroma, os resultados são mais desejáveis em termos de distribuição e estabilidade da cor; no entanto, como complicação, há o risco de dissecção irregular do tecido ou perfuração secundária da córnea10.
Essa técnica costuma ser mais rápida do que a técnica superficial manual, apesar de exigir maior habilidade do cirurgião, e proporciona uma aparência natural à córnea pigmentada. Além disso, tem uma recuperação pós-operatória menos sintomática, uma vez que a superfície da córnea apresenta apenas alguns cortes e os pigmentos da coloração não são expostos ao filme lacrimal11.
Ceratopigmentação intraestromal assistida por laser femtossegundo
Nesta técnica, o laser de femtossegundo é utilizado para criar os túneis intraestromais onde serão injetados os pigmentos para simular a cor iriana e a pupila. Um estudo de Alió e cols. (2011) utilizou esta técnica em um paciente de 25 anos que relatava fotofobia intensa, apresentando ao exame físico uma atrofia iriana importante, com deformação anatômica da íris e da pupila. Três meses após o procedimento, o paciente não apresentava qualquer sintoma de fotofobia, apresentando um resultado estético excelente12. No entanto, a grande dificuldade desta técnica consiste no alto custo e na disponibilidade da tecnologia6,8.
Com o avanço da tecnologia, os estudos mais recentes em KTP têm demonstrado resultados estéticos cada vez mais promissores com as técnicas automatizadas e assistidas por femtossegundo13,14. Essa técnica tem sido relatada como mais precisa e segura de executar, baseada na formação do túnel e na boa cicatrização da ferida, além de ser bem tolerada pelos pacientes.(11). No entanto, as técnicas de KTP superficial e intraestromal manuais são as que possuem maior número de estudos na literatura, demonstrando resultados muito satisfatórios, inclusive quando associadas8 (Figura 6). No Brasil, na primeira série de casos publicada recentemente sobre o assunto, oito pacientes responderam a um inquérito sobre sua satisfação estética com o procedimento de ceratopigmentação após um seguimento de dois anos. O inquérito incluía questões relacionadas ao desconforto pós-operatório e o impacto social observado após a cirurgia com a técnica ceratopigmentação intraestromal manual associada ou não à técnica de ceratopigmentação superficial manual. Todos os pacientes consideraram-se muito satisfeitos com os resultados, 75% relataram pouco desconforto pós-operatório e todos os pacientes relataram melhora significativa no bem-estar social e pessoal8.
Em relação aos casos de ceratopigmentação assistida por femtossegundo, os estudos mais recentes já têm descrito a técnica em pacientes com olhos saudáveis, simulando uma alteração na aparência da cor dos olhos10. Em olhos não saudáveis, há relatos de KTP com esta técnica para situações como correção de defeitos irianos12, síndrome de Urretz-Zavalia12, leucocoria e opacidades corneanas13, sem evidência de alterações na visão e astigmatismo dos pacientes11.
As complicações cirúrgicas da KTP são de origem multifatorial, embora possam estar mais relacionadas à curva de aprendizado do cirurgião. Em um estudo retrospectivo recente, 234 olhos de 204 pacientes foram avaliados quanto às complicações observadas com as diferentes técnicas de KTP. A porcentagem de complicações em relação a todos os procedimentos, entre 2002 e 2016, foi de 12,82%. Dentre as complicações funcionais, a fotofobia foi a complicação mais frequentemente observada (49% dos pacientes), geralmente no primeiro dia pós-operatório, porém com uma resolução de 81% dos casos após 6 meses de cirurgia. Em relação às complicações orgânicas, a mudança da coloração ao longo do tempo foi a mais relatada (19% dos pacientes), com um tempo médio para a mudança na cor de cerca de 4,6 anos3. No entanto, uma vantagem da técnica de KTP é a sua possibilidade de retoques, permitindo realizar novas correções da cor ao longo do tempo.
Além disso, outras complicações observadas em menor quantidade nos estudos relatados são a neovascularização, perfuração corneana, cobertura incompleta da opacidade, reopacificação da córnea, hipo ou hiperpigmentação, entre outras. Na série de casos publicada recentemente por nosso grupo, não foram relatadas queixas crônicas relacionadas à cirurgia, não sendo necessária nenhuma reabordagem durante os 2 anos de seguimento8.
Histopatologia
Na microscopia eletrônica, em relação aos corantes orgânicos, observou-se não haver grânulos na matriz extracelular, demonstrando que essas partículas podem ser ativamente ingeridas e retidas dentro da membrana celular dos ceratócitos por muito tempo, com estudos que mencionam até 61 anos após a cirurgia15.
O mesmo vale para os pigmentos minerais micronizados. Ou seja, não foi evidenciado nenhuma efusão de pigmento ou mudança de cor, inflamação estromal e neovascularização da córnea10. Em um estudo focado em determinar a tolerância e toxicidade do mineral micronizado, usando uma cor preta obtida a partir de óxido de ferro, a coloração de hematoxilina-eosina foi aplicada para analisar a cortes histológicos usando o protocolo padrão dessa coloração e o estudo histológico foi realizado usando o Microscópio Nikon Eclipse E400. Os resultados obtidos após 3 meses de acompanhamento foram que o epitélio corneal estava intacto, sem úlceras, erosões ou edema. Não foram observadas também hiperplasia ou atrofia, preservando a espessura normal do epitélio (3-5 células). Além disso, o estroma da córnea em olhos pigmentados e nos controles não mostrou sinais de cicatriz estromal ou fibrose. As fibras de colágeno mantiveram sua forma e não foi encontrada adesão exagerada entre essas fibras16. O exame histopatológico corroborou os resultados clínicos em relação à inflamação. Nenhuma difusão de pigmento ou alteração de cor ocorreu ao longo do estudo e não houve casos de neovascularização da córnea17.
Em relação às Partículas de Nanquim, um estudo de Fujita et al.(15), revelou que, ao injetar partículas de tinta nanquim e esferas de látex de poliestireno no estroma da córnea de coelhos, os fibroblastos da córnea podem endocitar essas partículas em um período de 3 a 4 dias após a injeção; e além disso, todas essas partículas foram armazenadas inalteradas por 6 meses.
Portanto, conclui-se que a ceratopigmentação é uma cirurgia pouco invasiva e uma alternativa comprovadamente benéfica na melhora estética de olhos disfuncionais ainda muito pouco conhecida no Brasil. Os autores têm relatado excelente estabilidade do padrão de pigmentação em seguimento, sem sinais de toxicidade ocular, representando assim uma boa opção cirúrgica, com diferentes técnicas que devem ser personalizadas de acordo com cada caso.
Deve-se considerar o fato de que opacidades corneanas desfigurantes podem prejudicar a autoconfiança e autoestima, e afetar negativamente a qualidade de vida do paciente. Portanto, a ceratopigmentação, além de ser uma alternativa de tratamento funcional, deve ser considerada como uma linha essencial do tratamento reparador desses pacientes. Novos estudos devem ser realizados de forma a aprimorar as técnicas de ceratopigmentação e os materiais e pigmentos utilizados para o implante corneano.
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INFORMAÇÃO DOS AUTORES |
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» Mariana Miyazi https://orcid.org/0000-0002-7665-4786 http://lattes.cnpq.br/5247882616068391 | |
» Kauê Marques Ferreira https://orcid.org/0009-0000-4823-7689 http://lattes.cnpq.br/3599697677705811 | |
» Cristiano Urbano Becker https://orcid.org/0000-0002-8982-6268 http://lattes.cnpq.br/5641845252660611 |
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» Maria Vitória Vicente Cardoso https://orcid.org/0000-0002-1578-8895 http://lattes.cnpq.br/5472622126304060 |
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» Alexandre Xavier da Costa https://orcid.org/0000-0002-9929-8358 http://lattes.cnpq.br/3978094045616220 |
Financiamento: Declaram não haver.
Conflitos de Interesse: Declaram não haver.
Recebido em:
24 de Junho de 2022.
Aceito em:
21 de Janeiro de 2024.