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Contribuições Especiais

O primeiro atendimento do paciente com suspeita de estrabismo

The first consultation with a patient with suspected strabismus

Sidney Julio Faria e Sousa

DOI: 10.17545/e-oftalmo.cbo/2016.62

RESUMO

Este artigo fornece diretrizes ao oftalmologista geral para o primeiro atendimento do paciente com suspeita de estrabismo. Os dois principais objetivos são: saber se o estrabismo realmente existe e, em caso positivo, determinar se ele se deve a alguma enfermidade ocular ou sistêmica grave. Na busca dessas respostas, o examinador deverá realizar uma série de exames e raciocínios que, no final, trarão as condições de orientar adequadamente o paciente ou sua família sobre as providências subsequentes a serem tomadas.

Palavras-chave: Estrabismo: Torcicolo: Esotropia: Exotropia

ABSTRACT

This report offers guidelines to the general ophthalmologist on the first consultation with a patient with suspected strabismus. The two main objectives of this report are to describe how to determine whether strabismus actually exists and, in case it does, how to determine whether it is due to an eye disorder or systemic disease. The results of a series of tests conducted by the examiner should lead to logical deductions that will ultimately provide a diagnosis. The patient and his or her family can then be advised about the subsequent measures to be taken.

Keywords: Strabismus: Torticollis: Esotropia: Exotropia

INTRODUÇÃO

O reconhecimento de que a criança tem estrabismo pode ser chocante aos pais. Por isso, muitos deles tendem a negligenciar o problema, amparados na esperança de que o desvio desapareça espontaneamente com o tempo. Essa atitude é particularmente comum nos estágios iniciais da enfermidade, quando o estrabismo nem sempre é óbvio ou constante. Isso tende a retardar o diagnóstico e o tratamento não só do distúrbio oculomotor como das anormalidades visuais associadas. Contudo, mais cedo ou mais tarde, a família pedirá ajuda ao oftalmologista que, por sua vez, deverá estar preparado para isso. O objetivo desta publicação é orientar o oftalmologista a efetuar o primeiro atendimento do estrabismo de maneira objetiva e eficaz.

O Desvio Realmente Existe?

Diante de um caso com suspeita de estrabismo, a primeira preocupação do examinador será a de determinar se existe o desvio. Para responder a essa pergunta é interessante dividi-la em partes, conforme abaixo.

1. O paciente aparenta ser estrábico?

O diagnóstico de inspeção é um bom começo, mas pode ser enganoso porque inúmeras condições podem simular o estrabismo. O epicanto, por exemplo, simula o estrabismo convergente. Esta condição se configura quando a pele palpebral cobre o canto nasal do olho, numa proporção maior do que o habitualmente esperado. A esclera nasal fica menos aparente, dando a impressão de endotropia (Figura1A). É prevalente em crianças com a base do nariz pouco desenvolvida. O hipertelorismo simula a exotropia. O afastamento excessivo das órbitas gera a impressão de que os olhos estejam desviados para fora (Figura 1B).

 


Figura 1. A. Epicanto simulando endotropia; B. Hipertelorismo simulando exotropia

 

Por outro lado, é também possível que um desvio manifesto não seja detectado durante o exame, devido ao seu caráter intermitente ou tamanho diminuto.

2. Existe posição viciosa de cabeça?

Muitas vezes o único indicativo do estrabismo é a posição viciosa da cabeça. Esta pode estar inclinada para um lado, girada para a direita ou esquerda, com o queixo elevado ou abaixado. É sinal típico dos estrabismos com limitação da rotação ocular: paresia muscular ou restrição mecânica ao movimento. O paciente posiciona a cabeça no lado oposto ao da limitação, evitando a diplopia. Na presença de posição viciosa, é preciso mover a cabeça no sentido oposto ao do torcicolo para revelar o desvio. As inclinações de cabeça sugerem paresia dos músculos oblíquos superiores (Figura 2). As torções horizontais são associadas aos problemas com os músculos retos horizontais. As elevações e abaixamentos do queixo indicam dificuldades com os retos verticais.

 


Figura 2. Posição viciosa de cabeça: inclinada para a esquerda e queixo abaixado

 

3. Os reflexos corneanos sugerem desvio?

A córnea funciona como um espelho convexo. Se os olhos olham diretamente para uma fonte luminosa, formam-se reflexos corneanos no centro da pupila. Entretanto, isso só ocorre quando ambos os olhos fixam o alvo. No olho desviado para dentro (endotropia) o reflexo aparece descentralizado temporalmente e no olho desviado para fora (exotropia), descentralizado nasalmente (Figura 3). A assimetria dos reflexos corneanos entre olhos é destarte forte indicativo de estrabismo. Entretanto, é preciso diferenciar essa condição dos reflexos corneanos simetricamente descentralizados, de alguns olhos não estrábicos. Nestes últimos, os eixos visuais não coincidem com os centros pupilares. Quando o paciente olha para a luz, os reflexos se apresentam simetricamente descentralizados quer temporalmente, simulando a endotropia, quer nasalmente simulando a exotropia (Figura 4). É a ausência ou presença da simetria dos reflexos que diferencia as duas condições.

 


Figura 3. Reflexos corneanos assimétricos. Acima: endotropia; Abaixo: exotropia.

 

 


Figura 4. Reflexos corneanos simétricos. Acima: descentralizados temporalmente; Abaixo: descentralizados nasalmente.

 

4. Como o paciente responde ao cover test simples?

O principal exame para o diagnóstico do estrabismo é o cover test simples (Figura 5). Solicita-se que o paciente olhe atentamente para um objeto. Cobre-se o olho fixador e observa-se o comportamento do outro. Se o olho descoberto movimenta-se para tomar a fixação é porque ele estava desviado; está diagnosticado o estrabismo. Não havendo movimento, repete-se o exame no outro olho. Não havendo movimento algum de ambos os olhos, a pessoa provavelmente não tem estrabismo. Nas crianças com menos de 1 ano, o cover test pode ser feito com o dedo polegar do examinador, usando os demais como apoio sobre a testa do examinado. Um excelente estímulo, nessa faixa etária, é um molho de chaves agitado vigorosamente diante dos olhos do paciente.

 


Figura 5. Cover test simples.

 

O cover test simples tem falhas. As condições que mais o tornam falho são: falta de atenção, fixação excêntrica e microestrabismo. Na desatenção e fixação excêntrica o movimento de refixação pode não ocorrer mesmo na presença de estrabismo. No primeiro caso, porque o paciente não está olhando para o alvo; no segundo, porque o objeto de visão já esta viciosamente alinhado a um ponto extrafoveal. No microestrabismo (desvio ≤ 5 prisma-dioptrias) o movimento de fixação pode não ser detectado pelo examinador.

5. Há motivos clínicos para a existência de estrabismo?

Esta pergunta só pode ser respondida com um exame ocular completo. O paciente deve ser cicloplegiado para a detecção de altos vícios de refração, opacidades dos meios transparentes, lesões da retina e nervo óptico que justifiquem a suspeita de estrabismo. Se houver achados positivos, aumenta a chance de que haja alguma anormalidade oculomotora.

6. A visão está afetada?

A diferença de visão entre os dois olhos pode ser causa ou consequência de um estrabismo. Portanto esta é uma informação de importância fundamental. Não é crucial medir a visão com optotipos agrupados, neste primeiro exame. O importante é utilizar o recurso que seja mais atrativo para o paciente. As crianças tendem a se interessar mais pelos optotipos isolados, particularmente quando apresentados criativamente na forma de jogo.

Nos infantes, a visão só pode ser inferida. Isto é feito com base no padrão de fixação e na alternância do desvio. Chamamos de padrão de fixação a forma como o olho observa um objeto. Olhos com baixa visão (< 0,05) tem dificuldade de achá-lo e de mantê-lo sob mira. O nistagmo pendular é o exemplo mais típico dessa eventualidade. Testa-se o padrão de fixação fazendo o olho acompanhar um objeto que se movimenta lentamente no campo de visão.

Se o estrabismo é alternante é porque as visões se assemelham. Havendo diferença de visão entre os olhos, o cérebro tende a preferir o de melhor acuidade. Assim, quanto maior a preferência por um olho, maior a chance de que o parceiro tenha menor visão. Quando nenhum desvio ou anomalia ocular é encontrado, infere-se normalidade de visão.

7. Há motivos familiares ou ambientais que justifiquem o estrabismo?

Você deve pesquisar se o paciente teve sofrimento fetal e se possui parentes próximos com hipermetropia alta ou estrabismo. As três condições aumentam as chances de manifestação da enfermidade.

Uma vez respondidas as perguntas anteriores, você poderá concluir que não há evidência alguma de estrabismo. Nessa situação, será prudente marcar um retorno em três meses, para certificar-se do diagnóstico. Se continuar não havendo evidencias da enfermidade, você poderá marcar novos retornos até que se tenha certeza do veredicto. Já examinei casos de pacientes que aos oito meses apresentavam apenas epicanto e que com dois anos passaram a desviar os olhos. Havendo estrabismo, o próprio exame do cover test já dá pistas relativas ao tipo de desvio: horizontal, vertical ou misto. Embora essas informações sejam importantes na caracterização da enfermidade oculomotora e no planejamento do tratamento, o fundamental é que um desvio foi detectado. Isto posto, a próxima preocupação é com a possibilidade de ele estar relacionado com alguma doença grave, ocular ou sistêmica.

O desvio é secundário a alguma enfermidade grave?

A estratégia para responder essa pergunta é enquadrar o estrabismo em um dos cinco grupos abaixo.

1. Estrabismo Parético: resulta da debilidade de um ou mais músculos extraoculares. As causas mais frequentes são as lesões dos II, IV e VI pares cranianos. Esse tipo de estrabismo distingue-se pela assimetria dos desvios e limitação da rotação ocular. Assimetria é o fato do desvio aumentar com a fixação do olho afetado e no campo de ação do músculo enfraquecido. O diagnóstico é feito com o exame das rotações oculares e com a medida dos desvios nas 9 posições diagnósticas do olhar. Essas posições incluem posição em frente, direita, esquerda, acima, abaixo, direita acima, esquerda acima, direita abaixo e esquerda abaixo. Fotografias prévias, denotando posição anômala de cabeça, sugerem que o problema é pelo menos tão antigo quanto o da documentação fotográfica.

2. Estrabismo Sensorial: resulta da dificuldade de fusão das imagens fornecidas pelos dois olhos, motivada por uma diferença acentuada de qualidade das mesmas. As causas mais frequentes são as anisometropias de grande magnitude (> 3D), opacidades de meios transparentes e anormalidade do fundo do olho e nervo óptico. O diagnóstico é feito com o exame da refração ocular, reflexo vermelho, biomicroscopia e fundoscopia.

3. Estrabismo Restritivo: resulta de uma restrição mecânica à rotação ocular. Incluem as síndromes de Duane1 e Brown2, as fraturas do assoalho de órbita3 e a miopatia tireoidiana4 . O diagnóstico diferencial é feito com o estrabismo parético, por meio da eletromiografia ou do teste das ducções passivas. O último estuda a rotação passiva do olho no campo onde há a limitação de movimento. Ele é feito sob anestesia tópica, com uma pinça presa ao limbo, no lado oposto ao da rotação pretendida. O teste é considerado positivo quando for detectada restrição mecânica à movimentação. Na paresia, a rotação com a pinça se processa sem resistência. O diagnóstico de estrabismo restritivo é mais fácil quando o oftalmologista conhece as enfermidades restritivas do globo ocular (Figura 6).

 


Figura 6. Limitação de rotação no campo de ação do reto lateral direito.

 

4. Estrabismo Acomodativo: resulta de um excesso ou insuficiência da convergência acomodativa. Associa-se aos altos vícios de refração ou a uma relação CA/A anômala. O diagnóstico é feito pelo estudo da variação do ângulo do desvio, com e sem correção óptica. A relação CA/A mede a fração da convergência ocular (CA) associada à acomodação (A). Uma relação muito alta pode levar a um endodesvio e uma muito baixa, a um exodesvio. Apenas para esclarecimento, o outro componente da convergência ocular é a convergência fusional (CF), originária da compulsão do cortex visual de fundir as imagens de ambos os olhos.

5. Estrabismo Essencial: é aquele de causa indeterminada. Conjectura-se que resulte de uma dificuldade fusional congênita. O diagnóstico é feito por exclusão.

Os estrabismos que costumam se associar às enfermidades graves são os paréticos e os sensoriais. Os primeiros, particularmente os recentes, de curso evolutivo e sem história de trauma, devem ser imediatamente encaminhados para investigação neurológica. Porém, antes de enviá-los ao neurologista será prudente tomar as seguintes precauções: (1) certifique-se que o estrabismo é recente, uma vez que os antigos geralmente não necessitam de atendimento imediato: (2) certifique-se que o estrabismo é parético e não restritivo; (3) nos casos de início recente, havendo dúvidas sobre o tipo de estrabismo, é conveniente esperar a definição do quadro, com exames repetidos da motilidade ocular; (4) no caso do músculo afetado ser o obliquo superior, certifique-se que a paresia é recente e não uma paresia antiga, recentemente descompensada. Fotografias antigas, revelando posições viciosas de cabeça, reforçam a segunda hipótese.

Os estrabismos sensoriais denotam problemas do olho ou do sistema visual. Eventualmente sinalizam ameaça à saúde geral. O primeiro sinal de um retinoblastoma pode ser o estrabismo.

Como os estrabismos acomodativos e os essenciais são muito mais frequentes, a chance de que seu paciente estrábico venha necessitar de acompanhamento médico geral é muito baixa. Espera-se, portanto, que na maioria dos casos a sua decisão se restrinja a tratá-lo ou encaminhá-lo ao especialista de oculomotricidade. Seja qual for a decisão, o importante é que você terá as informações necessárias para orientar o paciente ou seus familiares sobre o melhor caminho a seguir.

 

REFERÊNCIAS

1. DeRespinis PA, Caputo AR, Wagner RS, Guo S. Duane's retraction syndrome. Surv Ophthalmol. 1993;38(3):257-88. http://dx.doi.org/10.1016/0039-6257(93)90077-K

2. Faria e Sousa SJ. Síndrome da restrição do obliquo superior. Arq Bras Ophthalmol. 1981;44(5):155-6

3. Tang DT, Lalonde JF, Lalonde DH. Delayed immediate surgery for orbital floor fractures: less can be more. Can J Plast Surg. 2011 ; 19(4):125-8. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3269201/

4. Hodes BL, Shoch DE. Thyroid ocular myopathy. Trans Am Ophthalmol Soc. 1979;77: 80-103. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1311695/pdf/taos00022-0102.pdf

 

 

Fonte de financiamento: declaram não haver.

Conflito de interesses: declaram não haver.

Recebido em: 2 de Outubro de 2016.
Aceito em: 11 de Outubro de 2016.


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