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Casos Clínicos Discutidos

Antibiótico intracameral para prevenção de endoftalmite aguda pós-cirurgia de catarata no Brasil

Intracameral antibiotics to prevent acute endophthalmitis after cataract surgery in Brazil

Mathias Violante Mélega1; Rodrigo Pessoa Cavalcanti Lira2; Carlos Eduardo Leite Arieta3

DOI: 10.17545/e-oftalmo.cbo/2016.87

RESUMO

A endoftalmite aguda pós-cirurgia de catarata é uma grave complicação cirúrgica e por ser de etiologia infecciosa pode ser prevenida pelo uso de antissépticos e antibióticos. Diversas drogas e diferentes formas de administração foram testadas com esse fim, entretanto o que se sabe até o momento, é que além do uso tópico já consagrado da iodopovidona pré-operatória, o uso da cefuroxima intracameral ao final da cirurgia é a medida mais eficaz para prevenção da endoftalmite aguda. Todavia no Brasil, assim como nos Estados Unidos, esta droga não se encontra disponível para uso intraocular, o que nos faz buscar alternativas viáveis para diminuir esta grave complicação cirúrgica.

Palavras-chave: Endoftalmite: Catarata: Antibioticoprofilaxia: Cefuroxima

ABSTRACT

Acute endophthalmitis is a serious complication of cataract surgery that, given its infectious etiology, can be prevented using antiseptics and antibiotics. Various drugs and different formulations and routes of administration have been tested for this purpose; however, thus far, besides the well-established preoperative topical application of povidone-iodine, the use of intracameral cefuroxime at the end of surgery is the most effective measure to prevent acute endophthalmitis. However, in Brazil, as in the United States, cefuroxime is not available for intraocular use. This necessitates a search for feasible alternatives to reduce the incidence of this serious surgical complication.

Keywords: Endophthalmitis: Cataract: Antibiotic Prophylaxis: Cefuroxime

A endoftalmite aguda, apesar de pouco frequente, é uma das mais temidas complicações pós-operatórias da facectomia. A incidência dessa complicação cirúrgica varia muito entre diferentes continentes, países ou mesmo cidades vizinhas entre si. Estudo de 2010 mostra frequência de 0,30% no Brasil,1 enquanto estudo de 2013 mostra uma incidência de 0,03% na Suécia.2 A endoftalmite aguda pós-operatória é uma condição infecciosa, extremamente grave, causada por microrganismos (geralmente bactérias) introduzidos no olho durante ou após a cirurgia e que pode levar à cegueira irreversível. Entre as bactérias Gram positivas que mais comumente causam endoftalmite aguda pós facectomia estão o Staphylococcus epidermidis, S. aureus, Streptococcus β hemolítico e Enterococcus faecalis. Entre as Gram negativas estão Haemophilus influenzae e Pseudomonas aeruginosa.14,19,20. Raramente bactérias atípicas, anaeróbias ou fungos causam endoftalmite aguda. Estudo multicêntrico europeu evidenciou que cerca de 17% dos pacientes com endoftalmite apresentaram acuidade visual menor que 20/200 enquanto 48,3% permaneceram com acuidade visual < 20/40.3 Sendo uma entidade infecciosa, pode ser prevenida pelo uso de antissépticos e antibióticos profiláticos.

Antibiótico Intracameral

Em 2007 foi publicado o ensaio clínico multicêntrico da ESCRS (European Society of Cataract and Refractive Surgeons),3 demonstrando o benefício do uso intracameral de antibióticos de largo espectro para prevenção da endoftalmite pós-operatória. Esse estudo concluiu que o uso da cefuroxima intracameral diminuiu significantemente (4,92 vezes) o risco de endoftalmite aguda pós-cirurgia de catarata, evitando de 2 a 4 casos em 1000 pacientes operados, tornando-se marco importante na oftalmologia. Revisão sistemática de 2013 e metanálise de 2015 corroboraram a relevância desse estudo, contribuindo para que o uso da cefuroxima intracameral fosse adotada por inúmeros cirurgiões principalmente na Europa.4,5

Até 2012 a solução intracameral era preparada através da diluição da cefuroxima de uso endovenoso em solução salina balanceada dentro do próprio centro cirúrgico. Em 2012 a cefuroxima para uso intracameral (Aprokam®) foi aprovada pela European Medicines Agency (EMA) tornando-se comercialmente disponível em mais de 16 países europeus, permitindo que um número ainda maior de cirurgiões adotasse essa prática como rotina em seus procedimentos cirúrgicos.16

Entretanto, em países como Brasil e Estados Unidos, a cefuroxima intracameral (Aprokam®) não se encontra disponível, fazendo com que o uso de profilaxia intracameral fosse adotado em pequena escala nesses países. Pesquisa realizada em 2010 pela ASCRS16 (American Society of Cataract and Refractive Surgeons) apontou que 82% dos cirurgiões que responderam à pesquisa, provavelmente utilizariam antibiótico intracameral se fosse comercialmente disponível. A necessidade do preparo e diluição da droga no centro cirúrgico possibilita que aconteçam erros de diluição e contaminação da droga a ser injetada no olho do paciente, com risco de toxicidade intraocular (descompensação corneana e oclusões vasculares, por exemplo), o que acaba por desencorajar seu uso por parte dos cirurgiões.

Alternativas à Cefuroxima

Considerando-se a inexistência da cefuroxima intracameral em países não europeus, outros antibióticos foram testados para profilaxia de endoftalmite. A vancomicina é altamente eficaz contra Gram positivos, mas essencialmente ineficaz contra Gram negativos, sendo, portanto reservada para casos de infecção por bactérias Gram positivas resistentes, como o MRSA (Staphylococcus aureus meticilino resistente), por exemplo. Além disso, casos de toxicidade intraocular foram notados em pacientes que foram submetidos ao uso da vancomicina intracameral.22,23

Recentemente o moxifloxacino surgiu como opção para profilaxia da endoftalmite. O moxifloxacino é uma quinolona de 4ª geração, com amplo espectro de cobertura contra bactérias gram-positivas, gram-negativas, microrganismos atípicos e anaeróbios. Apresenta pH de 6,8 e osmolaridade de 290 mOsm/Kg, compatível com tecidos intraoculares. Estudos em modelo animal 6,7 não evidenciaram toxicidade intraocular em coelhos.

Diversos estudos retrospectivos 8,9,10,11,13 concluíram que o uso intracameral do moxifloxacino em humanos é seguro e eficaz em reduzir o risco de endoftalmite. Haripryia15 em recente publicação, demonstrou diminuição de cerca de 4x na incidência de endoftalmite entre pacientes que receberam a dose intracameral de moxifloxacino.

Lira et al. 24 estudaram a segurança do moxifloxacino intracameral 2 anos após a cirurgia de catarata. O estudo incluiu as últimas 150 cirurgias antes e as primeiras 150 cirurgias após a introdução de moxifloxacino intracameral (150 mcg/0.03 mL) para a prevenção da endoftalmite pós-catarata. Não houve diferenças significativas entre os grupos em relação à contagem endotelial corneana, à paquimetria, à pressão intraocular e à acuidade visual corrigida. Também não foram observados eventos adversos oculares ou sistêmicos associados ao uso intracameral da moxifloxacino.

Inexiste até o momento estudo prospectivo randomizado que teste a eficácia do moxifloxacino, enquanto é bem estabelecido pelo ensaio clínico da ESCRS 2007 que a cefuroxima é segura e eficaz quando injetada na câmara anterior para prevenção de endoftalmite pós facectomia.12,14

Cefuroxima x Moxifloxacino

Considerando-se o espectro de atividade das duas drogas, não existe evidência até o presente momento de que o moxifloxacino intracameral seja mais eficaz que a cefuroxima em erradicar os microrganismos que mais frequentemente causam endoftalmite. Além disso, a dose descrita para uso intracameral do moxifloxacino varia de 100-500 mcg na literatura,8,9,10,11,12 enquanto já é bem definido que a dose da cefuroxima é de 1 mg.3

Quando se analisa a disponibilidade comercial das drogas, especificamente no Brasil, encontra-se o mesmo problema entre ambas; não existe cefuroxima, nem moxifloxacino comercialmente disponível para uso intracameral. Alguns cirurgiões relatam o uso do moxifloxacino 0,5% solução oftálmica (Vigamox®) para este fim, aspirando-se do frasco de colírio a solução a ser injetada. Este tipo de prática pode suscitar preocupações de ordem médico-legal, uma vez que este produto é destinado apenas para uso tópico.

Enquanto em nossa prática não surge opção de droga para uso intracameral, muitos cirurgiões optam pela profilaxia através do uso tópico de antibióticos. Existem controvérsias sobre o real efeito do uso de colírios de antibiótico, dias ou horas antes do procedimento cirúrgico. Estudo sueco2 concluiu que o uso tópico de antibiótico pré e pós-operatório não apresentou benefício comparado à clorexidina 0,05% e à cefuroxima intracameral. Estudo de He et al. 17 não evidenciou redução significativa da flora conjuntival após uso de quinolona de 4ª geração tanto usada 3 dias antes como 1 dia antes do procedimento. Moss et al. 18 não encontraram diferença estatisticamente significante ao se utilizar quinolona de 4a geração 3 dias antes do procedimento comparado a olhos que receberam apenas iodopovidona pré-operatória. Tais achados corroboram a conclusão do ensaio clínico da ESCRS de 2007 de que o uso de colírio de antibiótico no pré e pós-operatório não traz benefício comparado ao grupo submetido à injeção intracameral de cefuroxima, além de poder induzir resistência bacteriana.

 

CONCLUSÕES

Frente a esse quadro, os cirurgiões de catarata no Brasil se encontram em situação peculiar; já existe evidência científica suficiente demonstrando que o uso da cefuroxima intracameral é extremamente benéfico, porém não dispomos da droga para esse fim particular. Com relação ao moxifloxacino, as publicações atualmente disponíveis sugerem que seu uso diminui o risco de endoftalmite, entretanto por se tratar de estudos retrospectivos, possuem grau de evidência inferior aos ensaios clínicos controlados e randomizados. Além disso, também não dispomos da droga para uso intraocular o que nos impossibilita de usá-la com o respaldo legal necessário para este fim. Enquanto isso, aguardamos a comercialização da cefuroxima para uso intracameral no Brasil e a realização de novos estudos com maior nível de evidência científica que nos autorize a utilizar outras drogas.

 

REFERÊNCIAS

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Fonte de financiamento: declaram não haver.

Conflito de interesses: declaram não haver.

Recebido em: 18 de Fevereiro de 2017.
Aceito em: 25 de Fevereiro de 2017.


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