Milton Ruiz Alves1; Keila Monteiro de Carvalho2
DOI: 10.17545/eOftalmo/2023.0014
“A vida não pode ser economizada para amanhã. Ela acontece sempre no presente.” Rubem Alves
As prevalências de miopia e alta miopia continuam aumentando em todo o mundo1,2. A associação entre alta miopia e afecções oculares que ameaçam a visão impõe a necessidade da adoção de políticas de saúde voltadas para limitar o alongamento ocular, objetivando assim, minimizar as consequências visuais adversas dele decorrentes3-5. As intervenções atuais que podem adiar o início e/ ou controlar a progressão da miopia em crianças enquadram-se nas categorias: ambiental (comportamental), farmacológica e óptica6,7. O melhor conhecimento de como detectar o risco e gerenciar a progressão da miopia coloca, também, relevância nas escolhas da intervenção terapêutica e do momento mais adequado para intervir e iniciar o manejo da miopia em crianças8.
Todas as crianças com menos de 9 anos devem ser incentivadas a cultivar bons hábitos de higiene visual. Atenção especial merecem as portadoras de hipermetropia inferior a +0,75D e as de pais míopes. As diretrizes de tempo de tela da Organização Mundial da Saúde recomendam que crianças de 5 a 17 anos não tenham mais de duas horas de tempo de tela recreativo por dia e apenas uma hora por dia para crianças em idade pré-escolar9. A quantidade de tempo de tela reduz o sono e o desempenho escolar10, enquanto atividades ao ar livre podem inibir a progressão da miopia em crianças míopes dos 6 aos 7 anos, em 30% em um ano11. A miopia presente aos 13 anos foi relacionada às crianças que tinham hipermetropia menor que +0,75D aos 6-7 anos de idade12. Um estudo mostrou associação negativa entre o tempo ao ar livre e miopia: o tempo adicional ao ar livre na faixa etária de 3 a 9 anos de idade foi associado à redução da incidência de miopia dos 10 aos 15 anos13. Outro estudo encontrou sete parâmetros independentes associados ao aceleramento do alongamento ocular em crianças de 6 a 9 anos: miopia parental; um ou mais livros lidos por semana; tempo gasto na leitura; não prática de esportes; etnia não europeia; menos tempo gasto ao ar livre; e relação comprimento axial-raio de curvatura corneana. Os autores, com base nesses resultados, ressaltaram que mudanças comportamentais são de maior importância nessas crianças, e que devem ser consideradas medidas preventivas14. As crianças emetropes com um dos pais míopes têm o risco triplicado de se tornarem míopes e se ambos os pais forem míopes têm esse risco aumentado em seis vezes15. Ter irmãos que já são míopes, também, aumenta o risco, independentemente da miopia parental16.
A instituição de intervenções para o gerenciamento da progressão da miopia em crianças segue-se à identificação de fatores de risco e do diagnóstico de progressão da miopia. São considerados fatores de risco: idade inferior a 9 anos, miopia parenteral, tempo gasto ao ar livre igual ou inferior a 1,5h/dia; tempo gasto com atividades visuais de perto superior a 3h/dia, hipermetropia inferior a +0,75D aos 6-7 anos de idade, diâmetro anteroposterior igual ou maior que 23,6 mm17. Identifica-se a progressão da miopia quando o erro refrativo, sob cicloplegia, tem um aumento >-0,50 D em um ano e/ou quando a taxa anual de alongamento ocular for ≥0,3 mm/ano até os 10 anos, ou >0,2mm/ano, a partir de 11 anos de idade17.
Em relação à intervenção farmacológica no gerenciamento da progressão da miopia em crianças, até o momento, a atropina tópica tem dominado tanto os ensaios clínicos quanto a prática clínica, onde agora é amplamente utilizada como um produto aprovado ou off-label18. Existem duas correntes para a escolha da dose inicial da atropina19. Na primeira escolha, inicia-se com a menor concentração (0,01%) e segue-se a criança por um ano; caso não se obtenha o controle, aumenta-se para 0,025%, e se necessário, após um ano, seguindo os mesmos critérios, aumenta-se para 0,05%. Na segunda escolha, a concentração é decidida de acordo com alguns critérios pré-estabelecidos de evolução da miopia na população infanto-juvenil: idade, taxa de progressão anual (TPM), refração e diâmetro anteroposterior (DAP). Se a idade estiver entre 5 e 8 anos, iniciar com atropina a 0,025%. Se a idade estiver entre 9 e 15 anos, observar se a TPM é >0,50D/ano, refração <-4D, e DAP <24,5mm, então, começar com atropina a 0,01%. Se qualquer um desses critérios for maior do que os observados anteriormente, iniciar com atropina a 0,025%. Para os pacientes acima de 15 anos, sugere-se atropina a 0,01%.
Cunha et al.20 mostraram que o uso noturno de 1 gota de atropina a 0,025%, durante 2 anos, foi eficaz em diminuir a progressão da miopia em 65% em crianças brasileiras com idades entre 6 e 12 anos, equivalente esférico (EE) entre -1,00 e -6,00D e TPM ≥-0,50D. O controle da progressão da miopia com a atropina é dose-dependente. Os efeitos colaterais mais frequentes no uso de baixa concentração da atropina são a fotofobia, visão de perto turva e conjuntivite alérgica. Aos dois anos, a fotofobia foi experimentada por 8,6%, 4,7% e 5,5% das crianças no uso de atropina nas concentrações de 0,05%, 0,025% e 0,01%, respectivamente21.
Em relação à intervenção óptica no gerenciamento da progressão da miopia, neste momento, contamos com a ortoceratologia, lentes de contato descartáveis de 1-dia (MiSight® 1-day) e lentes oftálmicas com capacidade para corrigir o defocus hipermetrópico periférico, montadas em óculos (MiyoSmart® Hoya e Stellest® Essilor).
A ortoceratologia utiliza lentes de contato especialmente desenhadas para remodelar temporariamente a córnea. É uma opção de tratamento eficaz e promissora para controlar a miopia em crianças. Geralmente, o efeito inibitório de 2 anos sobre o alongamento axial tem variado de 30% a 55%, comparados com óculos de visão simples e lentes de contato22,23. No entanto, ocorre fenômeno de rebote na progressão da miopia após a descontinuação de ortoceratologia e a duração do tratamento para efeito máximo permanece desconhecido23.
MiSight® 1 day (CooperVision) é uma lente de contato gelatinosa de design multizona indicada para controlar a progressão da miopia em crianças com idades de 8 a 12 anos, no início do tratamento24. O centro da lente se concentra na correção de longe, enquanto anéis alternados ao redor do centro criam defocus miópico para retardar o alongamento dos olhos24. Durante um período de 3 anos, houve redução de 59% na progressão da miopia em EE (D) e de 52% no alongamento ocular em mm24. Durante um período de 6 anos, as crianças que usavam MiSight® 1 day progrediram, em média, menos de 1,00D25.
As lentes oftálmicas MiyoSmart® (Hoya) têm uma zona central de 9,4mm para a correção de longe circundada por uma zona de tratamento composta por 396 microlentes esféricas com poder dióptrico de +3,50D que criam uma superfície de defocus miópico na frente da retina para retardar o alongamento dos olhos (tecnologia DIMS -Defocus Incorporated Multiple Segments)26. Os resultados de um ensaio clínico de 3 anos mostraram redução da progressão da miopia (EE) e alongamento axial (mm) de 86% e 61%, respectivamente27.
As lentes oftálmicas Stellest® (Essilor) têm uma zona central de 9,0 mm para a correção de longe circundada por uma zona de tratamento composta por 11 anéis contendo 1021 microlentes altamente asféricas com poder dióptrico variável de +3,50D a +5,00D que criam um volume de defocus miópico na frente da retina para retardar o alongamento dos olhos (tecnologia HAL - Highly Aspherical Lenslet)28. Os resultados de um ensaio clínico de 2 anos com estas lentes em comparação com o grupo controle histórico (lentes de visão simples) mostraram redução da progressão da miopia (EE) e alongamento axial (mm) de 67% e 60%, respectivamente29.
Considerando que nenhuma estratégia de intervenção (ambiental-comportamental, farmacológica ou óptica) provou ser eficaz na inibição total da progressão da miopia em crianças, impõe-se a explorar as terapias combinadas como uma abordagem para melhorar a eficácia do tratamento7. Durante o período de acompanhamento de 2 anos, a combinação de ortoceratologia e atropina a 0,01% foi mais eficaz na desaceleração do alongamento axial do que a ortoceratologia isoladamente em crianças com miopia, especialmente no primeiro ano e em crianças com miopia inicial baixa30.
A atual epidemia de miopia não mostra sinais de diminuir. Apesar da eficácia limitada das intervenções disponíveis e do potencial para a recuperação, a diminuição projetada no risco de complicações mais tarde na vida proporcionada por reduções mesmo moderadas na progressão da miopia sugere que o tratamento deva ser considerado para todos os míopes jovens, especialmente os com 12 anos de idade ou menos31. Bullimore e Brennan32 mostraram 67% de aumento no risco de degeneração macular miópica (DMM) a cada aumento de 1,00D de miopia. Mesmo uma redução de 0,25D na progressão da miopia (equivalente a 0,1 mm) diminui cerca 10% no risco de DMM. Dado o tamanho de efeito relativamente modesto esperado para as intervenções discutidas neste editorial, recomendamos aos médicos oftalmologistas que orientem todas as crianças a cultivarem bons hábitos de higiene visual para retardar o início da miopia e que sejam ousados na implementação de terapias farmacológicas e/ópticas voltadas para desacelerar a progressão da miopia em crianças míopes31.
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INFORMAÇÃO DOS AUTORES
Fonte de financiamento: Declara não haver.
Conflito de interesses: Declara não haver.
Recebido em:
24 de Janeiro de 2023.
Aceito em:
26 de Janeiro de 2023.