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Casos Clínicos Discutidos

Reconstrução palpebral da criptoftalmia na síndrome de Fraser: relato de dois casos

Eyelid reconstruction of cryptophthalmos in Fraser syndrome: report of two cases

Juliana Angélica Estevão de Oliveira1; Natália Lopes Leal2; Mariluze Maria Souza Sardinha2,3

DOI: 10.17545/eOftalmo/2022.0016

RESUMO

A Síndrome de Fraser é uma doença autossômica recessiva rara, cuja principal manifestação ocular é a criptoftalmia. A variante abortiva se manifesta como coloboma da pálpebra superior medial, fórnice superior anormal e simbléfaro. Este artigo relata dois casos de SF em crianças do sexo feminino, submetidas a reconstrução de fórnice e pálpebra superior por criptoftalmia abortiva em olhos com potencial visual. A dificuldade mais importante foi a falta de tecido disponível para reconstrução, já que uma paciente tinha apenas 33 dias e a outra menos de 3 anos. Em ambos os casos, houve recorrência do simbléfaro. No primeiro, a mucosa oral não foi suficiente para cobrir o globo ocular e, membrana amniótica e conformador não estavam disponíveis. No segundo, a presença de anormalidades conjuntivais não foi reconhecida no intraoperatório. Outras cirurgias serão adiadas até que os pacientes tenham mais frouxidão tecidual, uma vez que ambas as córneas não estão expostas.

Palavras-chave: Síndrome de Fraser; Coloboma; Conjuntiva; Retalho miocutâneo; Sindactilia

ABSTRACT

Fraser’s Syndrome is a rare autosomal recessive disease whose main ocular manifestation is cryptophthalmos. The abortive variant manifests as coloboma of the medial upper eyelid, abnormal upper fornix, and symblepharon. This article reports two cases of FS in female children, who underwent upper fornix and upper eyelid reconstruction due to abortive cryptophthalmos in eyes with visual potential. The most important difficulty was the lack of tissue available for reconstruction, as one patient was only 33 days old and the other less than 3 years old. In both cases, there was recurrence of the symblepharon. In the first one, the oral mucosa was not enough to cover the eyeball, and amniotic membrane and conformator were not available. In the second, the presence of conjunctival abnormalities was not recognized intraoperatively. Further surgeries will be delayed until patients have more tissue laxity since both corneas are not exposed.

Keywords: Fraser syndrome; Coloboma, Conjunctiva; Myocutaneous flap; Syndactyly.

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Fraser (SF) é uma doença rara, autossômica recessiva, cujo diagnóstico é baseado em características fenotípicas1,2. A taxa de consanguinidade em famílias com SF é estimada em 27%3. As anomalias oculares ocorrem em até 83% dos pacientes e se manifestam mais comumente como criptoftalmia1. A criptoftalmia pode ser classificada em três tipos: completa, incompleta e abortiva4. A forma completa é caracterizada pela continuidade da pele sobre uma estrutura ocular desorganizada4,5. Na forma incompleta, as estruturas laterais da pálpebra estão presentes. Na variante abortiva, há coloboma da porção medial da pálpebra superior, fórnice superior anormal e simbléfaro5. Neste artigo, relatamos dois casos desta rara síndrome para auxiliar no seu reconhecimento e discutir as dificuldades de sua reabilitação oftalmológica.

 

RELATO DE CASOS

Caso 1

Paciente do sexo feminino, 33 meses, com diagnóstico de SF, apresentou criptoftalmia abortiva bilateral, hipertelorismo, sobrancelhas muito espaçadas, implantação baixa de cabelo na região da testa, clivagem ao longo do plano médio nasal, implantação baixa das orelhas, sindactilia nos três dedos centrais das mãos, hérnia umbilical, rim único e anormalidades da genitália externa. Havia uma história familiar de consanguinidade parental e um irmão afetado. O exame oftalmológico mostrou capacidade de movimento de perseguição de objetos visuais no olho direito (OD), de seguir uma fonte de luz no olho esquerdo (OS) e, em ambos os olhos (OU), córnea queratinizada impedindo a visualização da câmara anterior, insuficiência límbica total, fórnice inferior raso, coloboma de pálpebras superiores e simbléfaro. A reconstrução da pálpebra superior direita foi planejada. A dissecção das aderências corneanas foi realizada e um enxerto da mucosa oral foi suturado como lamela posterior da pálpebra superior rudimentar. A esclera foi deixada nua devido à indisponibilidade do tecido e do anel de simbléfaro. Um enxerto palpebral inferior de espessura total, em formato de pentágono, foi suturado ao defeito da pálpebra superior. O fechamento primário foi escolhido para reparo do defeito palpebral inferior. Aproximadamente 30 dias depois, observou-se recorrência do simbléfaro (Figura 1).

 


Figura 1. Achados clínicos pré-operatórios e aspecto pós-operatório.

 

Caso 2

Paciente do sexo feminino, 33 dias de idade, com diagnóstico de SF, apresentou criptoftalmia abortiva no OS e criptoftalmia completa no OD, sindactilia nos quatro dedos médios das mãos, deformidade e implantação baixa das orelhas, implantação baixa de cabelo na região da testa, estenose traqueal e anormalidade da genitália externa. Ambos os casos podem ter parentesco distante, uma vez que, que suas famílias vêm da mesma região. O exame oftalmológico mostrou capacidade de acompanhar uma fonte de luz no OS, coloboma de pálpebra superior, simbléfaro, córnea queratinizada impedindo a visualização da câmara anterior e fórnice inferior raso. A tomografia computadorizada (TC) de crânio revelou microftalmia e ausência de cristalino no OD, globo ocular aumentado no OS. A ultrassonografia ocular mostrou pequenas vesículas ópticas e ausência do cristalino no OD, 21,50 mm de comprimento axial e escavação evidente no OS. Optou-se primeiramente pela reconstrução da pálpebra superior esquerda e depois realização de trabeculotomia. A dissecção das aderências corneanas foi realizada e a conjuntiva apresentou aspecto normal no fórnice e na lamela posterior. Desta forma, nenhum enxerto de mucosa foi necessário. Um retalho de espessura total da pálpebra inferior foi suturado à pálpebra superior (retalho de Mustardé). A cicatrização por segunda intenção foi a opção escolhida para o defeito da pálpebra inferior. Cerca de dez dias depois, notou-se deiscência parcial e recorrência do simbléfaro. Os procedimentos subsequentes incluiram nova sutura do retalho e transplante de enxerto da conjuntiva bulbar para o fórnice superior. Após cinco semanas, divisão do retalho e fechamento primário da pálpebra inferior após cantotomia lateral para liberação da tensão foram realizados. (Figura 2).

 


Figura 2. Retalho de Mustardé e aspecto pós-operatório.

 

DISCUSSÃO

A criptoftalmia abortiva é potencialmente ameaçadora para a visão devido à exposição da córnea resultante do coloboma da pálpebra superior e do simbléfaro que limita a motilidade do globo4. Esta é a principal indicação de cirurgia precoce em olhos com potencial visual e esteve presente em ambos os casos relatados2,4. O objetivo da cirurgia é reconstruir a pálpebra superior e o fórnice superior4. A TC orbital e o doppler colorido ocular podem ser usados antes da cirurgia para ajudar a avaliar a integridade do globo ocular5. Múltiplas técnicas têm sido descritas, mas a maioria dos cirurgiões prefere técnicas de reconstrução de pálpebras como a técnica Cutler-Beard ou retalho de espessura total de Mustardé para correção da pálpebra inferior com reconstrução lamelar posterior adicional, como realizado no segundo caso relatado1,2,4. O desafio é, muitas vezes, agravado pela falta de frouxidão tecidual em crianças, pelo risco de indução de ambliopia iatrogênica devido à oclusão do eixo visual e pelo risco de retração cicatricial e distorção da pálpebra inferior do doador4.

Vários materiais têm sido utilizados para a reconstrução do fórnice, incluindo membrana da mucosa oral, palato duro, conjuntiva, enxertos esclerais e membrana amniótica1,4,5. Relata-se que a membrana amniótica foi superior à membrana da mucosa oral e palato duro na manutenção do fórnice no reparo criptoftálmico4,5. Sua maior vantagem é a capacidade de reduzir a inflamação e a cicatrização enquanto promove a epitelização4.

A recorrência do simbléfaro é comparativamente comum após cirurgia de criptoftalmia abortiva e tende a recidivar na mesma área em que foi observada na primeira apresentação4. As lentes esclerais podem ser úteis para manter o saco conjuntival e evitar novas aderências corneopalpebrais5.

A conjuntiva de aparência normal do fórnice superior do segundo caso relatado não estava saudável e um enxerto de conjuntiva bulbar foi posteriormente necessário. Houve recorrência do simbléfaro em ambos os casos, um risco que poderia ter sido reduzido se a membrana amniótica ou um anel de simbléfaro estivessem disponíveis.

Embora, a reconstrução cirúrgica para melhorar a acuidade visual em até 20/100 tenha sido relatada, o prognóstico visual é tipicamente ruim1,2. Essas questões devem ser discutidas cuidadosamente com os pais antes de dar início ao tratamento cirúrgico, que será diferente em cada caso, dependendo da extensão da anormalidade ocular e do potencial visual2,4. A reabilitação cirúrgica oculoplástica na síndrome de Fraser é extremamente desafiadora, e, muitas vezes, múltiplas cirurgias serão necessárias para esses pacientes devido ao grau de cicatrização, contratura e saúde da córnea1,2,4,5. Geralmente, a reconstrução das pálpebras deve preceder qualquer procedimento na córnea e a prioridade é reabilitar o olho com potencial visual2.

Os casos relatados podem auxiliar no diagnóstico clínico desta síndrome rara. Além disso, eles mostram que o grande desafio da reconstrução palpebral, nesses casos, é a frouxidão tecidual limitada. O uso de membrana amniótica, quando disponível, pode ajudar a prevenir a recorrência do simbléfaro.

 

REFERÊNCIAS

1. Tran AQ, Lee BW, Alameddine RM, Korn BS, Kikkawa DO. Reconstruction of Unilateral Incomplete Cryptophthalmos in Fraser Syndrome. Ophthalmic Plast Reconstr Surg. 2017;33 (3S Suppl 1):S73-S75.

2. Saleh GM, Hussain B, Verity DH, Collin JR. A surgical strategy for the correction of Fraser syndrome cryptophthalmos. Ophthalmology. 2009;116(9):1707-1712.e1.

3. Mbonda A, Endomba FT, Kanmounye US, Nkeck JR, Tochie JN. Diagnosis of Fraser syndrome missed out until the age of six months old in a low-resource setting: a case report. BMC Pediatr. 2019;19(1):292.

4. Ding J, Hou Z, Li Y, Lu N, Li D. Eyelid and fornix reconstruction in abortive cryptophthalmos: a single-center experience over 12 years. Eye (Lond). 2017;31(11):1576-1581.

5. Liu Z, Xie B, Li Y, Ding J, Li D. Reconstruction strategy in isolated complete Cryptophthalmos: a case series. BMC Ophthalmol. 2019;19(1):165.

 

 

INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Financiamento: Declaram não haver

Aprovado pelo seguinte comité de ética em pesquisa: Hospital Professor Edgard Santos (CAEE: 50133521.1.0000.0049).

Conflitos de Interesse: Declaram não haver.

Recebido em: 26 de Agosto de 2022.
Aceito em: 11 de Outubro de 2022.


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