Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

1038

Visualizações

 


Casos Clínicos Discutidos

Perda visual temporária de percepção luminosa após cirurgia de catarata

Transient no light perception visual acuity after cataract surgery

Eduardo Cunha de Souza1; Milton Ruiz Alves2

DOI: 10.17545/e-oftalmo.cbo/2017.78

RESUMO

Mulher branca de 40 anos, com diabetes tipo 1 controlado, apresentou perda visual de percepção luminosa no olho direito, imediatamente após cirurgia de catarata sem complicações. A paciente havia se submetido a uma vitrectomia 10 anos antes, devido a um descolamento de retina causado pelo diabetes. O uso de lidocaína intracameral sem conservantes em um olho vitrectomizado pode ter facilitado a difusão posterior do medicamento neste caso. A completa recuperação da visão da paciente sugere uma relativa ausência de toxicidade retiniana da lidocaína em pequenas concentrações intracamerais.

Palavras-chave: Catarata; Percepção visual; Diabetes Mellitus Type 1; Vitrectomia

ABSTRACT

A 40y-old white woman, with controlled type 1 diabetes, presented with transient “no light perception vision” in her right eye immediately following uncomplicated cataract surgery. She had vitrectomy for diabetic retinal detachment years ago. The use of intracameral unpreserved lidocaine in a vitrectomized eye may have facilitated the posterior diffusion of the drug in this case. Patient full recovery of vision suggests the relative lack of retinal toxicity of lidocaine in small intracameral concentrations.

Keywords: Cataract; Visual Perception; Diabetes Mellitus Type 1; Vitrectomy

INTRODUÇÃO

A lidocaína intracameral é utilizada com frequência para intensificar o efeito da anestesia tópica durante a cirurgia ocular. Embora a lidocaína intracameral seja considerada segura para a córnea e a câmara anterior1, ainda há dúvidas quanto a possíveis efeitos tóxicos da lidocaína na retina. Apresentamos aqui um caso de uma rara complicação associada ao uso de lidocaína intracameral.

Relato do Caso

Uma mulher branca de 40 anos, com diabetes tipo 1 controlado, apresentou perda de percepção luminosa no olho direito, imediatamente após cirurgia de catarata sem complicações. Em sua história ocular pregressa, destacava-se uma vitrectomia via pars plana, realizada 10 anos antes, em função de retinopatia diabética proliferativa. Sua melhor acuidade visual corrigida antesda cirurgia de catarata era de 20/70, devido a uma esclerose nuclear avançada. O exame do segmento posterior evidenciou uma retina panfotocoagulada sob controle e OCT normal Figura1. A cirurgia de catarata foi efetuada por facoemulsificação, com sedação endovenosa e anestesia tópica, suplementada com lidocaína intracameral sem conservantes (Xylestesin® 1%). Devido às queixas inesperadas de ausência de percepção luminosa, foi providenciada uma consulta urgente de retina e a paciente foi examinada aproximadamente 45 minutos após a cirurgia. Confirmou-se que sua acuidade visual era de ausência de percepção luminosa até o maior ajuste do oftalmoscópio indireto. A paciente negava dor ou qualquer tipo de desconforto no olho. A tensão ocular digital era normal. O exame dos segmentos anterior e posterior do olho não mostrou quaisquer anormalidades. Especificamente, não havia edema do disco óptico ou palidez, e a retina tinha aspecto normal. Os vasos sanguíneos retinianos apresentavam calibres e cursos normais e não foi constatado nenhum êmboloFigure 2. Aproximadamente 90 minutos após a cirurgia, a paciente começou a recuperar a percepção luminosa. Durante as horas seguintes, a paciente recuperou progressivamente a totalidade do campo visual, começando lentamente a partir do lado temporal em direção às áreas central e nasal. No dia seguinte, a acuidade visual era de 20/25 no olho operado.

 

DISCUSSÃO

Atualmente, a anestesia em cirurgias de facoemulsificação é comumente obtida com o uso tópico da lidocaína, ocasionalmente suplementada com lidocaína intracameral sem conservantes, para diminuir a dor durante a manipulação cirúrgica. Acredita-se que na maioria dos olhos submetidos à cirurgia de catarata, a lidocaína injetada na câmara anterior não atinja o tecido da retina ou o nervo óptico numa concentração suficiente, devido ao efeito da barreira fisiológica da cápsula do cristalino, das zônulas e do humor vítreo. Porém, no presente caso, a vitrectomia realizada anteriormente pode ter alterado essas estruturas, facilitando a difusão do anestésico nas regiões posteriores durante a cirurgia.

Em 1997, Hoffman e Fine2 relataramum caso semelhante de perda total temporária da visão, após a utilização de lidocaína intracameral sem conservantes para reparar uma deiscência traumática de transplante de córnea. Esses autores atribuíram o mecanismo da perda visual temporária a uma anestesia total da camada fibrosa de nervos da retina, até o nível do nervo óptico ou próximo dele. Em 1998, Gillset al3 relataram amaurose em quatro pacientes após a utilização de lidocaína intracameral; em nenhum desses casos a cápsula posterior estava intacta. Os quatro pacientes recuperaram-se completamente dentro de algumas horas. Em 2009, Falzonet al4 relataram um caso de perda total temporária da visão depois de uma facoemulsificação comum dispositivo viscocirúrgico oftalmológico (DVO) intracameral e solução de lidocaína, complicada pela ruptura da cápsula posterior. A acuidade visual melhorou para 20/80 após um dia e para 20/25 depois de uma semana. Em 2014, Gupta e Kumar5 relataram um caso de perda total temporária da visão após o uso de lidocaína em um olho após vitrectomia. Em 2015, Eshraghiet al6 relataram um caso de perda total temporária da visão após o uso de lidocaína intracameral depois de uma cirurgia de catarata polar posterior em que houve ruptura da cápsula posterior.

Como se observou nos relatos anteriores e no presente caso, a recuperação completa da visão sugere uma relativa ausência de toxicidade retiniana da lidocaína sem conservantes em pequenas concentrações intracamerais. O presente relato ilustra os possíveis efeitos visuais passageiros da lidocaína intracameral. A identificação de tais casos permite que os médicos assegurem ao paciente que sua função visual retornará ao normal depois de algumas horas de observação.

 

FIGURAS

 


Figura 1 Retinografia aneritra e OCT (varredura horizontal) pré-operatórias do olho direito.

 

 


Figura 2 Retinografia pós-operatória do olho direito.

 

REFERÊNCIAS

1. Ezra DG, Allan BDS. Topical anaesthesia alone versus topical with intracameral lidocaine for phacoemulsification [review]. Cochrane Database Syst Rev. 2007;(3):CD005276. http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD005276.pub2

2. Hoffmann RS, Fine H. Transient no light perception acuity after intracameral lidocaine injection. J Cataract Surg. 1997;23:957-8. http://dx.doi.org/10.1016/S0886-3350(97)80261-1

3. Gills JP, Johnson DE, Cherchio M, Raanan MG. Intraocular anesthesia. Ophthalmol Clin North Am. 1998;11:65-71

4. Falzon K, Guerin MB, Tim F. Transient, complete loss of vision secondary to posterior diffusion of an ophthalmic viscosurgical device-lidocaine solution during complicated phacoemulsification. J Cataract Refract Surg. 2009;35(8):1472-3. http://dx.doi.org/10.1016/j.jcrs.2009.04.024

5. Gupta SK, Kumar A. temporary complete vision loss after intracameral lignocaine in a post-vitrectomy eye: a single casereport. Egypt Retina J. 2014;2:83-5. http://dx.doi.org/10.4103/2347-5617.158226

6. Eshraghi B, Katoozpour R, Anvari P. Transient complete visual loss after intracameral anesthetic injection in cataract surgery. J Curr Ophthalmol. 2015;27(3-4):129-31. http://dx.doi.org/10.1016/j.joco.2015.12.005

 

 


Eduardo Cunha de Souza
http://orcid.org/0000-0002-0045-1173
http://lattes.cnpq.br/2596456430539614

 

 

Fonte de financiamento: declaram não haver.

Conflito de interesses: declaram não haver.

Recebido em: 16 de Dezembro de 2016.
Revisado em: 31 de Março de 2017.
Aceito em: 16 de Dezembro de 2016.


© 2024 Todos os Direitos Reservados