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Editorial

Pode o confinamento domiciliar prolongado durante a pandemia da COVID-19 aumentar a prevalência e/ou progressão de miopia em crianças em idade escolar?

May prolonged home confinement during the COVID-19 pandemic increase the prevalence and/or progression of myopia in school-aged children?

Milton Ruiz Alves1; Edson dos Santos-Neto1; Keila Monteiro de Carvalho2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2021.0011

“Otimismo é quando a gente sorri para o futuro “por causa de”; Esperança é quando a gente sorri para o futuro “a despeito de”.
Rubem Alves

A pandemia da COVID-19 tem apresentado imensos desafios em todo o mundo1. Para conter o contágio, muitos países implementaram medidas restritivas para reduzir aglomeração e formação de multidões2. No auge da crise, quase 1,6 bilhões de crianças em 195 países não puderam estudar em suas salas de aula.3 Estudando em casa, alunos e crianças, em todo o mundo, sempre que possível, estão usando a tecnologia de cursos online, videoaulas e livros didáticos eletrônicos3. O Brasil é um dos países onde as escolas estão fechadas por mais tempo e, até hoje, 18 estados ainda mantêm a educação apenas remotamente4.

O confinamento domiciliar prolongado, provavelmente, terá um impacto significativo na incidência global de miopia5-8. Embora muitos investigadores acreditem que a progressão da miopia tenha sido acelerada durante o período do afastamento social da pandemia de COVID-19, faltam evidências para apoiar essa pressuposição.6 No entanto, a miopia representa uma séria preocupação de saúde pública por duas razões principais4. Em primeiro lugar, a miopia não corrigida representa uma das principais causas de incapacidade visual em crianças, particularmente, em países de baixa e média renda. Em segundo lugar, a alta miopia na população pediátrica está ligada a um alto risco de complicações potencialmente fatais nas próximas gerações de idosos.

Nos últimos anos, o uso da internet em telas de digitais vem aumentado rapidamente entre jovens9,10. As atividades das crianças em ambientes internos e o tempo de uso de telas digitais aumentaram, e as atividades ao ar livre diminuíram. Sabe-se que a diminuição de atividades ao ar livre está significativamente associada a uma maior incidência de miopia em crianças em idade escolar11-13. Estudos de intervenção revelaram que o aumento do tempo gasto ao ar livre diminuiu a incidência de miopia em crianças12,14. Uma meta-análise publicada em 2012 estimou que a razão de chances de desenvolver miopia foi reduzida em 2% para cada hora adicional de tempo gasto ao ar livre por semana15. A revisão sistemática mais recente concluiu que mais tempo gasto ao ar livre ajuda a retardar o aumento do comprimento axial ocular, bem como a reduzir o risco de miopia patológica16.

A baixa visão decorrente da miopia compromete o desenvolvimento do indivíduo não só na infância, mas também ao longo da sua vida. Parece inevitável que a proporção de pessoas afetadas pela miopia aumente nas próximas décadas17. No Brasil, a prevalência de miopia tem permanecido baixa até agora e a prevalência de alta miopia ainda menor18,19. Essa situação levanta a questão se são necessárias medidas tão intensas de saúde pública para a prevenção da progressão da miopia em nosso país como foram implantadas em outras regiões, como a Ásia Oriental, embora, a prevenção de miopia reduza o impacto da miopia na vida do indivíduo20. Isso poderia ser particularmente relevante para as formas hereditárias de miopia para as quais uma medida preventiva ainda não foi demonstrada20. O aumento do tempo gasto ao ar livre é a única intervenção conhecida para reduzir o aparecimento da miopia20 e os efeitos sazonais marcados observados na progressão da miopia, pelo menos, sugerem que a sua progressão pode ser regulada de forma consistente modulando os efeitos conhecidos das pressões educacionais e do tempo gasto ao ar livre21,22.

Um estudo transversal prospectivo foi realizado durante 6 anos consecutivos (2015-2020) para investigar alterações refrativas e prevalência de miopia em 123. 535 crianças de 6 a 13 anos de 10 escolas primárias em Feicheng, China8. Devido à pandemia da COVID-19 em 2020, essas crianças em idade escolar foram confinadas em suas casas, e cursos online foram oferecidos. Este estudo mostrou que a prevalência de miopia em 2020 foi maior do que a maior prevalência de miopia em 2015-2019 para crianças de 6 anos (21,5% vs. 5,7%), 7 (26,2% vs. 16,2%) e 8 anos (37,2% vs. 27,7%). Portanto, a prevalência de miopia em 2020 foi aproximadamente 3 vezes maior para crianças de 6 anos, 2 vezes maior para crianças de 7 a 1,4 vezes maiores para crianças de 8 anos. Este aumento substancial na prevalência de miopia não foi observado nas faixas etárias mais altas (9-13 anos), apesar de as crianças com mais idades (séries 3-6) terem sido submetidas à cursos on-line diários mais intensivos (2,5 horas) em comparação com os estudantes mais jovens (séries 1-2, 1 hora diária). Esses achados levaram os investigadores a conjecturar a hipótese de que crianças mais jovens são mais sensíveis à mudança ambiental do que as crianças mais velhas8. O estudo forneceu evidências de que, entre crianças de 6 a 8 anos, a plasticidade da miopia seria mais alta e o controle da miopia poderia ser mais fácil. Acima dessa janela etária, a plasticidade da miopia seria mais baixa, e a miopia seria mais difícil de controlar durante mudanças ambientais8. E esse desvio miópico seria temporário ou permanente? Um estudo recente sugere que o desvio miópico foi revertido parcialmente após a suspensão do confinamento domiciliar das crianças, sugerindo que tanto o espasmo acomodativo quanto as mudanças estruturais teriam contribuído para a aceleração desse desvio6.

A magnitude da miopia está diretamente associada ao risco de miopia patológica23. A prevalência da miopia patológica é de apenas 1% a 19% na população de miopia baixa a moderada (-3 D), mas a sua prevalência é de 50% a 70% na população de miopia alta24,25. Um incremento de 1-D na miopia está associado a um aumento de 67% na prevalência de miopia patológica26. Além da magnitude da miopia, a idade é um fator importante no desenvolvimento da miopia patológica20. A idade de início da miopia ou a duração da progressão da miopia foram os preditores mais importantes da alta miopia20.

Estratégias para retardar o início da miopia e/ou a progressão da miopia para a alta miopia devem se concentrar em crianças com idade mais jovem de início de miopia ou com maior duração de progressão da miopia. Incentivar as crianças a passar mais tempo ao ar livre pode ser uma estratégia apropriada também para crianças muito pequenas8 porque dados de Cingapura mostraram que 10% dessas crianças desenvolveram miopia já aos 6 anos de idade, contrastando com a média da idade de início da miopia que era 8,5 anos27. O aumento do tempo gasto ao ar livre é a única intervenção conhecida para reduzir o aparecimento da miopia20. Considerando que futuros ensaios clínicos controlados confirmem que o estado refrativo das crianças mais jovens pode ser mais sensível às mudanças ambientais do que as crianças mais velhas, o aumento do tempo gasto ao ar livre deverá ser imperativo.

Uma série de novas intervenções para reduzir a progressão da miopia em crianças já atingiu alto nível de evidência28. Há evidência consistente de benefício para a prevenção do desenvolvimento da miopia em crianças com o uso tópico de atropina de baixa concentração e de lentes de contato gelatinosas multifocais, ortoceratologia e de novas lentes multifocais montadas em óculos20. Portanto, não se pode prescindir de um programa de vigilância oftalmológica pós-pandemia para crianças com miopia para a tomada de decisão com base em características demográficas e clínicas, fatores de risco e preferência individual, a fim de controlar melhor o início e a progressão da miopia nas crianças pós-pandemia8.

Em conclusão, o confinamento domiciliar prolongado durante a pandemia da COVID-19 foi associado a um a desvio miópico significativo entre crianças chinesas de 6 a 8 anos.8 No entanto, como as crianças pequenas estão em um período crítico para o desenvolvimento da miopia, e o estado refrativo dessa população pode ser mais sensível às mudanças ambientais8, enquanto o confinamento domiciliar for necessário, os pais deverão controlar o tempo de tela gasto pelas crianças o máximo possível e aumentar as suas atividade ao ar livre, mantendo um distanciamento social seguro.

 

REFERÊNCIAS

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INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Fonte de financiamento: Declaram não haver

Conflito de interesses: Declaram não haver

Recebido em: 16 de Maio de 2021.
Aceito em: 6 de Junho de 2021.


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