Milton Ruiz Alves1; Gustavo Victor2; Pedro Carlos Carricondo3; Ricardo Menon Nose4
DOI: 10.17545/e-oftalmo.cbo/2017.77
RESUMO
No Brasil, a maior barreira para o uso intracameral de antibiótico profilático rotineirono final da cirurgia de catarata é a falta de uma preparação comercial de antibiótico para uso intracameral aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O Grupo de Revisão da Literatura da Sociedade Brasileira de Catarata e Cirurgia Refrativa (ABCCR/ BRASCS) escolheu este tema para atualização pretendendo revisar aspectos dos espectros de atividade, dosagem e preparação, segurança e eficácia dos antibióticos moxifloxacino, cefuroxima e vancomicina, considerados os mais seguros para o uso intracameral.
Palavras-chave: Antibioticoprofilaxia; Antibacterianos/administração & dosagem; Cefuroxima; Vancomicina; Moxifloxacino
ABSTRACT
In Brazil, the greatest barrier to the routine intracameral use of prophylactic antibiotics at the end of cataract surgery isthe lack of a commercially available antibiotic preparation for intracameral use approved by the National Sanitary Surveillance Agency (ANVISA). The Literature Review Group of the Brazilian Society for Cataract and Refractive Surgery (ABCCR/BRASCS) chose this topic for update aiming to review aspects regarding the spectrum of activity, dosage, preparation, safety and efficacy of moxifloxacin, cefuroxime, and vancomycin, which are deemed the safest antibiotics for intracameral use.
Keywords: Antibiotic Prophylaxis; Anti-Bacterial Agents/ administration & dosage; Cefuroxime; Vancomycin; Moxifloxacin
A endoftalmite bacteriana é uma complicação rara da cirurgia de catarata. Ocorre em 0,04% a 0,2% dos casos1,2 e está associada com alta morbidade ocular e perda visual2. No passado a maioria dos casos de endoftalmite não tinha a fonte da infecção identificada3. O estudo multicêntrico Endophthalmitis Vitrectomy Study-EVS 4 revelou que 82% dos isolados de endoftalmite correspondiam à flora bacteriana ocular externa. Em relação aos microrganismos encontrados nas endoftalmites, as bactérias gram-positivas foram as maisfrequentes, seguidas das gram-negativas e dos fungos, aproximadamente 72,9%, 10,7% e 15,83%, respectivamente5. Com o crescimento da expectativa de vida e do envelhecimento populacional, a prevalência dessa complicação pós-operatória sofrerá um aumento, caso medidas de redução derisco não sejam implementadas3. Medidas profiláticas como o tratamento de desordens da superfície ocular previamente à cirurgia, antissepsia pré-operatória com iodo-povidona, esterilização meticulosa do equipamento e uso de antibiótico intracameral no final da cirurgia da catarata são essenciais para minimizar o risco de infecção pós-cirúrgica6,7,8,9. Entre as limitações principais para o uso intracameral de antibiótico no Brasil estão a falta de uma formulação comercial para uso intracameral que dispense a necessidade de manipulação e/ou diluição e o fato de o produto não ser aprovado para esse fim (uso off label). Nesta atualização serão abordados aspectos relacionados com o espectro de atividade, preparo, segurança e eficácia do uso intracameral dos antibióticos moxifloxacino, cefuroxima e vancomicina no final da cirurgia de catarata para a profilaxia da endoftalmite bacteriana.
Espectro de atividade
Braga-Mele et al.6 apontaram três antibióticos (moxifloxacino, cefuroxima ou vancomicina) cuja segurança e eficácia no uso intracameral estão adequadamente avaliados na literatura. Segundo Javitt7, considerando-se que cerca de 3 milhões de cirurgias de catarata são realizadas anualmente nos Estados Unidos, o uso intracameral de antibiótico no final da cirurgia de catarata teria um potencial para salvar anualmente cerca de 2 mil destes olhos do impacto negativo da endoftalmite pós-operatória.
O moxifloxacino (fluoroquinolona de quarta geração) tem amplo espectro de ação, alta potência, induz pouca resistência, tem boa penetração tissular e excelente eficácia, especialmente contra bactérias gram-positivas8,10. A atividade antimicrobiana do moxifloxacino se dá por mecanismo de ação de dupla ligação, inibindo tanto a da DNA girase (bactérias gram-negativas) quanto a topoisomerase (bactérias gram-positivas). As células humanas não apresentam essas enzimas, sendo alvos ideais para a atividade do antibiótico. Devido à raridade de mutações duplas, o uso preferencial dessas poderia potencialmente limitar o aumento de resistência a elas11.
A cefuroxima (cefalosporina de segunda geração) apresenta um anel betalactâmico que interfere com o passo final na formação da parede celular bacteriana. As betalactamases produzidas por S. aureus são penicilases e não afetam as cefalosporinas, porém as betalactamases produzidas por bactérias gram-negativas inativam muitas das cefalosporinas11. A cefuroxima tem amplo espectro de ação e cobre a maioria dos organismos gram-positivos e gram-negativos associados com endoftalmite pós-cirurgia de catarata, com exceção dos Staphylococcus aureus meticilina-resistentes (MRSA)7,12.
A vancomicinainibe a biossíntese do peptideoglicano durante a formação da parede celular11. Tem eficácia contra o estafilococo meticilina-resistente e S. pneumoniae penicilina-resistente. A vancomicina é um antibiótico bactericida com virtualmente 100% de cobertura contra os organismos gram-positivos causadores de endoftalmite pós-catarata6.
Dosagem e preparação
O colírio de moxifloxacinoa 0,5% (Vigamox®, Alcon) é uma preparação comercial, isotônica, sem conservante, com pH de 6,8 e osmolaridade aproximada de 290 mOsm/Kg, valores similares aos do humor aquoso (pH 7,4 e 305 mOsm/Kg)6,10. O uso intracameral dessa solução tópica não tem sido associado com toxicidade (uso intracameral a 0,5% ou diluído em solução salina balanceada 50:50)6,10.
A cefuroxima sódica está disponível para a comunidade europeia em frascos na concentração de 50mg em pó para solução injetável contendo 50 mg de cefuroxima (como 52,6 mg de cefuroxima sódica) (Aprokan®, Tea Pharmaceuticals)12. A preparação da medicação para o uso intracameral começa injetando-se 5 ml de solução fisiológica estéril sem conservante no frasco do Aprokam®, obtendo-se solução de cefuroxima na concentração de 10mg/ml. Em seguida, aspira-se 0,1 ml dessa solução com seringa de 1 ml (1mg de cefuroxima) e o processo termina com a adaptação de uma cânula nessa seringa para a injeção intracameral. Essa solução tempH e pressão osmótica próximos dos valores fisiológicos (pH, 7,3 e osmolaridade, 335mosmol / kg).
No Brasil, a cefuroxima sódica está disponível em frascos-ampola contendo 750 mg de cefuroxima (equivalente a 789 mg de cefuroxima sódica) na forma de pó com coloração branca a amarelo-clara, acompanhados de uma ampola contendo 6 ml de água bidestilada para uso intramuscular ou intravenoso (Zinacef®, GlaxoSmithKline Brasil Ltda.)13. Para uso intracameral, usa-se apenas o conteúdo do frasco-ampola (750 mg de cefuroxima) que é, inicialmente, diluído em 15 ml de soro fisiológico estéril sem conservante, obtendo-se solução de cefuroxima na concentração de 50mg/ml. Em seguida, aspira-se 1 ml dessa solução à qual se adiciona 4 ml de solução fisiológica estéril sem conservante, obtendo-se solução de cefuroxima na concentração de 10mg/ml. Dessa solução, aspira-se 0,1 ml para injeção intracameral (1mg de cefuroxima em 0,1 ml de solução injetável). Finalmente, após a adaptação de uma cânula para injeção intracameral a seringa está pronta para o uso. No Brasil, o uso intracameral da cefuroxima é off-label13.
Cada frasco-ampola de vancomicina (Vancocina®, Lilly) 500 mg (equivalente a 512,60 mg de cloridrato de vancomicina) pó vem acompanhado com uma ampola de diluente de 10 ml de solução fisiológica estéril sem conservante para solução injetável intravenosa14. Para uso intracameral, o conteúdo do frasco ampola é reconstituído com 10 ml de solução fisiológica estéril sem conservante, dessa solução retira-se 2 ml e em seguida dilui-se novamente em 8 ml de solução fisiológica estéril sem conservante. A solução final tem a concentração de 1 mg em 0,1 ml. Dessa solução aspira-se0,1 ml para injeção intracameral (1mg de vancomicina em 0,1 ml de solução fisiológica estéril sem conservante)15.
Segurança e eficácia
O uso intracameral do colírio de moxifloxacino não tem sido associado com toxicidade (uso intracameral do moxifloxacino a 0,5% ou diluído em solução salina balanceada 50:50)6. Recentemente, 12 pacientes que receberam inadvertidamente injeção intracameral de outra solução comercial de moxifloxacino a 0,5% (Moxeza®, Alcon) desenvolveram síndrome tóxica do segmento anterior após a cirurgia de catarata (TASS)6. Essa medicação contém goma xanthan, sorbitol e tiloxapol, ou seja, tem propriedades detergentes e mucolíticas e, portanto, não deve de ser introduzida na câmara anterior6,10. A bula do Moxeza® traz a advertência de que o produto é somente para o uso tópico oftálmico e não pode ser injetado subconjuntivalmente ou introduzido diretamente na câmara anterior do olho6,10.
Kowalski et al.16 não encontraram toxicidade relacionada à injeção intracameral da solução do Vigamox®para a prevenção de endoftalmite por S. aureus em modelo animal (coelho). Outro estudo com pacientes demonstrou boa segurança douso intracameral do moxifloxacino na dosagem de 100µg/0,1ml ou 250 µg/0,05ml, obtidas a partir de diluição do Vigamox® 17.
Silva et al.18 estudaram a toxidade do uso intracameral de fluoroquinolonas de quarta geração no endotélio corneano (besifloxacino, gatifloxacino e moxifloxacino). Os autores concluíram que a injeção intracameral desses antibióticos não afetou adversamente o endotélio corneano. Verificaram, no entanto, que contatos mais prolongados dos antibióticos com as células endoteliais desencadearam toxicidade endotelial. Consideraram, também, que a injeção intracameral está associada com uma exposição mais curta dos antibióticos ao endotélio corneano em função da taxa de turnorver do humor aquoso. Levantaram a necessidade de se avaliar a meia vida dos antibióticos e possível alteração da taxa de turnover do humor aquoso induzida pela injeção intracameral, para assim, poder determinar o tempo exato da exposição endotelial aos antibióticos.
Muitos estudos têm mostrado que o uso intracameral de 1,0 mg de cefuroxima não foi associado com perda de células endoteliais ou edema macular19,20,21. Shahar et al.22 mostraram que a injeção intravítrea de 1,0 mg de cefuroxima não foi tóxica para a retina do coelho. Os efeitos colaterais das cefalosporinas -semelhantes às penicilinas, são reações de hipersensibilidade: rash maculopapular, urticária, febre, broncoespasmo, anafilaxia e eosinofilia. Imunologicamente, há reação cruzada com cerca de 20% dos alérgicos à penicilina, e, clinicamente, sugere-se uma taxa mais baixa (de 5 a 10%) de reação à cefalosporina em alérgicos à penicilina11. No entanto, houve dois relatos de reação anafilática seguindo-se à injeção de cefuroxima, um após injeção intracameral23 e outro após injeção vítrea24. Afortunadamente essa reação é muito rara6.
Yoeruek et al.25 estudaram os efeitos tóxicos do uso intracameral da vancomicinae cefuroxima em células endoteliais humanas e não encontraram toxicidade no uso desses antibióticos nas concentrações clínicas recomendadas; ressaltaram, no entanto, que autilização intracameral de concentrações mais altas desses antibióticos poderia provocar morte celular irreversível.
O uso intracameral de vancomicina tem sido implicado como causa de edema macular cistoide. Axer-Siegel et al.26 realizaram ensaio clínico controlado avaliando a mácula com angiografia fluoresceínica e encontraram associação de edema macular cistoide com o uso intracameral de vancomicina em cirurgia extracapsular de catarata. Ball e Barrett27 realizaram ensaio clínico controlado avaliando a espessura macular com tomografia de coerência óptica (OCT) e não encontraram aumento significativo da espessura macular com o uso intracameral de vancomicina e gentamicina em cirurgia de catarata.
Witkin et al.28 publicaram um estudo relatando que 11 olhos de 6 pacientes previamente submetidos à cirurgia de catarata sem complicações e que receberam vancomicina intracameral profilática desenvolveram entre os dias 1-14 do pós-operatório quadro de vasculite oclusiva hemorrágica da retina (HORV). Os autores relataram que apesar do tratamento agressivo que incluiu corticosteroide tópico e sistêmico, antibiótico intravítreo (4 olhos), vitrectomia via pars plana (4 olhos), injeção intravítrea de anti-VEGF e/ou fotocoagulação panretiniana para isquemia retiniana, a AV final foi menor que 20/100 em 8 dos 11 olhos. Os autores sugeriram que o quadro de HORV poderia representar uma reação imune tardia similar à vasculite leucocitoclástica induzida pela vancomicina. Recomendaram também que intervençãoprecoce com injeção intravítrea de anti-VEGF e/ou panfotocoagulação retiniana poderiam prevenir perda adicional de visão resultante de glaucoma neovascular. Rush et al.29 utilizaram vancomicina intracameral em 9.836 cirurgias consecutivas de catarata e não encontraram nenhuma associação de eventos adversos (toxicidade) com o uso intracameral do antibiótico. Nenhum dos pacientes desse estudo deixou de usar vancomicina intracameral por alergia.
DISCUSSÃO
O uso intracameral de antibiótico durante a cirurgia de catarata tem sido reportado desde os anos 199032. Durante todo esse tempo, os cirurgiões de catarata experimentaram o uso profilático intracameral de muitos antibióticos, mas notadamente, a preferência da maioria recaiu sobre cefuroxima, moxifloxacino e vancomicina30,32,33,34.
Shorstein et al.35 em estudo realizado nos Estados Unidos, analisando mais de 16 mil casos de cirurgia de catarata, encontraram queda de mais de 22 vezes na taxa de endoftalmites doscasos que receberam injeção intracameral de antibiótico no final da cirurgia. De novo, esses resultados apenas reforçam os dados do estudo da European Society of Cataract and Refractive Surgeons (ESCRS) 200736. Portanto, os dados publicados na literatura mostram que o uso intracameral de antibiótico profilático deveria ser adotado rotineiramente em toda a cirurgia de catarata e por extensão às outras cirurgias intraoculares. Essa prática já é adotada na Europa e em muitos outros lugares. Contudo, em países sem acesso às preparações aprovadas e disponibilizadas comercialmente, como o Brasil, alem de o uso intracameral ser off-label há ainda o risco potencial da preparação de doses incorretas.
Com relação à escolha do antibiótico para uso intracameral, não há na literatura nenhuma evidência forte ou consenso sobre que antibiótico é superior aos demais6. Podemos considerar que o moxifloxacino em relação a cefuroxima tem um espectro de ação mais amplo e mecanismo de ação concentração-dependente que pode ser vantajoso para uso intracameral17. Contudo, não há na literatura revisada estudos clínicos controlados que tenham avaliado comparativamente a eficácia do moxifloxacino em relação à cefuroxima, tornando-se impossível tirar conclusões. Podemos, no entanto, assinalar que outra vantagem do moxifloxacino é a sua comercialização sem conservantes (Vigamox®) o que permite o uso intracameral, embora essa forma de usonão apareça em suas especificações técnicas (VIGAMOX®;Alcon Laboratories)31.
A vancomicina é a outra alternativa ao uso da cefuroxima. Murphy et al.37 demonstraram em estudo de farmacocinética humana níveis surpreendentemente altos e prolongados da vancomicina no humor aquoso após injeção intracameral de vancomicina no final da cirurgia de catarata. O risco de desenvolvimento de resistência bacteriana no uso intracameral do antibiótico deve ser muito pequeno uma vez que o antibiótico é injetado em um compartimento ocular isolado. Nesse sentido, o estudo de Murphy et al.37 mostrou que os níveis de vancomicina foram efetivamente altos no humor aquoso e assim permaneceram por cerca de 24 horas com a dosagem de 1 mg de vancomicina intracameral.
A ABCCR/BRASCS pretendeu com esta atualização ressaltar toda a evidência robusta que existe na literatura a favor do uso intracameral de antibiótico para reduzir a taxa de endoftalmite bacteriana pós-cirurgia de catarata. Pretende, também, identificar e superar as barreiras para a adoção dessa prática entre nós.
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Fonte de financiamento: declaram não haver.
Conflito de interesses: declaram não haver.
Recebido em:
16 de Dezembro de 2016.
Revisado em:
31 de Março de 2017.
Aceito em:
23 de Dezembro de 2016.