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Editorial

Luxturna e a nova era da terapia gênica na oftalmologia

Luxturna and the new era of gene therapy in ophthalmology

Fernanda Belga Ottoni Porto

DOI: 10.17545/eOftalmo/2020.0005

Na quinta feira dia 6 de agosto de 2020 iniciamos uma nova era de profundas mudanças para a oftalmologia e a medicina: a primeira Terapia Gênica chega ao Brasil, com a aprovação do Voretigeno Nepavoreque (VN) (LuxturnaTM, Novartis) pela ANVISA.

O VN é um vetor viral adenovírus associado (AAV) contendo o cDNA RPE65 humano (AAV2-hRPE65v2), que é injetado no espaço subrretiniano após a vitrectomia pars plana em ambiente hospitalar para tratar a doença hereditária da retina (DHR) causada por variantes nas duas cópias do gene RPE65. O gene RPE65 codifica uma proteína essencial ao ciclo visual e responsável por converter all-trans-retinyl ester em 11-cis-retinol.1 A deficiência dessa proteína resulta em alteração do ciclo visual e consequente degeneração do fotorreceptor levando à perda progressiva da visão. Até hoje, 138 diferentes variantes foram reportadas, 66% associadas a Amaurose Congênita de Leber (ACL) e 16% a Retinose Pigmentar (RP).1 O espectro fenotípico varia de baixa visão congênita e profunda da ACL e sintomas mais leves na infância denominados distrofia retiniana severa de início precoce (DRIP) a RP. Com o passar do tempo, os pacientes com as DHR associadas a variantes no RPE65 não tratados evoluem com perda quase total da habilidade de perceberem a luz de qualquer intensidade.2 A capacidade de caminhar de maneira independente se torna muito limitada, levando à impossibilidade de realizar, na vida diária, outras atividades dependentes da visão.2

O estudo pivotal do VN que levou à aprovação da droga (ClinicalTrials.gov NCT00999609) incluiu 31 pacientes com variantes patogênicas bialélicas no RPE65 com idades entre 3 e 44 anos, que seriam elegíveis para o teste clínico caso eles tivessem acuidade visual pior que 20/60 e/ou campo visual menor que 20 graus da fixação. No primeiro ano, os pacientes foram randomizados 2:1 para receber tratamento bilateral com aproximadamente 18 dias de intervalo ou para ser seguido por um ano como grupo controle. No final do primeiro ano, pacientes do grupo controle recebiam o tratamento se continuassem a cumprir os critérios de inclusão. O endpoint primário de eficácia foi o teste de mobilidade de multi-luminância (TMML), uma modalidade de teste que avalia a capacidade do paciente caminhar por um trajeto definido com obstáculos em diferentes graus de luminância. A melhora do desempenho no TMML foi estatisticamente significativa nos pacientes tratados em comparação ao grupo controle. Os pacientes tratados ainda tiveram uma melhora média de 2 log no teste de limite de sensibilidade à luz de campo completo (FST, Full-field stimulus threshold). As melhorias foram aparentes 30 dias após o procedimento e permaneceram estáveis por pelo menos um ano. Os pacientes tratados na fase I do desenvolvimento da droga sugerem uma possível eficácia mantida por até 7 anos4 (ClinicalTrials.gov, NCT01208389). Os eventos adversos relacionados ao procedimento cirúrgico foram: elevação reversível transitória da pressão intraocular (20% dos pacientes), catarata (15% dos pacientes) e roturas retinianas (10% dos pacientes)3.

A aprovação do VN trouxe oftalmologistas e geneticistas a uma nova era de intervenção terapêutica de precisão e medicina personalizada, já que, agora, é possível modular doenças genéticas e alterar sua história natural. No entanto, há desafios significativos a serem abordados, como necessidade de diagnóstico preciso apropriado e aconselhamento genético, gestão pré-operatória das expectativas e discussão dos riscos e benefícios associados ao tratamento, com atenção especial às crianças. Preocupações não menos relevantes incluem o custo e acesso ao tratamento, à medida que entramos no tratamento comercial não investigativo.

O uso do Luxturna acelerou vários aspectos essenciais da atenção ao paciente com doenças hereditárias da retina, uma vez que o diagnóstico molecular determina a eligibilidade ao tratamento com o Luxturna ou a participação em testes clínicos. O processo de obter o diagnóstico molecular envolve caracterização do fenótipo (quadro clínico resultante da expressão do genótipo) por um médico com expertise em doenças hereditárias da retina. Atualmente, alterações patogênicas em 25 genes foram identificadas como causadoras de ACL e, em 90 genes, causadoras de RP (RetNet https://sph.uth.edu/retnet/). Essas alterações identificadas representam 75% dos casos de ACL e RP. A tecnologia atual permanece incapaz de detectar alterações nos outros 25% dos casos. Quando um gene causal é suspeitado, novas variantes identificadas devem ser exaustivamente testadas para confirmação da sua patogenicidade e testes de segregação precisam ser realizados. Compreender se uma variante é herdada ou se é de novo pode afetar sua classificação, bem como a interpretação dos resultados. Consequentemente a compreensão incorreta do efeito biológico da variante pode levar a interpretações clínicas errôneas e consequências graves. Drack et al.5 levantam uma série de exemplos e uma questão: quem deveria idealmente solicitar e explicar os resultados de testes genéticos? Os desdobramentos de um diagnóstico errôneo vão além de oferecer a incorreta definição da patologia ou informações distorcidas de sua condição de saúde, podendo resultar em oferecer tratamento ineficaz para uns e deixar de indicar tratamento para outros. Sendo assim, o rigoroso processo diagnóstico em vários passos usado nos testes clínicos pivotais deve continuar sendo usado para os tratamentos aprovados.

O tratamento de crianças requer considerações adicionais. Embora elas possam se beneficiar além do ganho visual, com perspectiva de melhor integração social, elas permanecem uma população vulnerável. Os menores de 5 anos merecem menção mais especial, pois o exame pós-operatório para complicações pode ser difícil e requerer avaliação sob narcose para possibilitar identificação e tratamento imediato de complicações potenciais. A formação de catarata secundária pode levar à ambliopia. Além disso, a criança mais nova tratada no estudo de Fase III tinha 3 anos de idade, enquanto, em bula, o tratamento foi aprovado a partir dos 12 meses de vida. Portanto, o benefício da intervenção precoce ainda precisa ser investigado. A orientação dos pais pré-tratamento é essencial para abordar perfil de risco com atenção à idade no momento do tratamento.

Custo e acesso ao tratamento continuam sendo desafios em todos os países em que a droga foi aprovada. No Brasil, o Luxturna a droga ainda não foi precificado, mas o custo da medicação nos Estados Unidos é de US$425.000 por olho, com o tratamento do segundo olho em 6 dias para minimizar o risco de resposta imune ao hospedeiro. A análise de custo-benefício, usando uma perspectiva social modificada, leva em consideração os custos de cuidados médicos, de educação, de perda de produtividade e não colocação no mercado de trabalho e os cuidados informais relacionados. O tratamento em uma única dose em cada olho despertou discussão sobre um novo modelo de negócio, mesmo com a incerteza da perenidade do tratamento.

Os testes clínicos do desenvolvimento do Luxturna trouxeram várias inovações. Uma vez que a DHR relacionada ao RPE65 afeta primariamente os bastonetes, a medida da acuidade visual e OCT (endpoints nos estudos das maculopatias como DMRI e edema macular) e da autofluorescência (clássico nos estudos de maculopatias atróficas) não seriam aplicáveis. Foram desenvolvidos novos parâmetros de avaliação do processo da doença (endpoints) como o TMML, que avalia simultaneamente a acuidade visual, campo visual e sensibilidade retiniana à luz que são essenciais para caminhar no mundo real. Foi preciso definir em qual fase do curso da doença o tratamento com injeção sub-retiniana de VN deveria ser indicado. Para esse esclarecimento, várias questões precisaram ser abordadas, incluindo tratamento de pacientes pediátricos nos testes clínicos, realização paralela de estudos de história natural da doença, compreensão da massa crítica de fotorreceptores, conhecimento da gravidade das variantes patogênicas e seus efeitos sobre o trofismo da retina.

Ainda assim, muitas perguntas só serão esclarecidas pós comercialização a partir do tratamento de um número maior de pacientes seguidos longitudinalmente. Qual seria a resposta ao tratamento com base no subtipo de mutação? Qual seria a idade ideal de intervenção? E o impacto do tratamento a longo prazo? Em meio a tantas dúvidas, há uma certeza: a oftalmologia e a genética no Brasil não serão as mesmas depois de hoje.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Porto FBO, Jones EM, Branch J, et al. Molecular screening of 43 Brazilian families diagnosed with Leber congenital amaurosis or early-onset severe retinal dystrophy. Genes (Basel). 2017;8(12):355. https://www.mdpi.com/241646

2. Porto FBO, Vasconscelos H, Sallum JMF. Amaurose Congênita de Leber, in: Série Oftalmologia Brasileira 5a ed. Rio de Janeiro. 2019 Ed. Cultura Médica acessado em 20 de junho de 2020. https://www.cbo.net.br/novo/classe-medica/seriecbo.php

3. Russell S, Bennett J, Wellman JA, Chung DC, Yu ZF, Tillman A, Wittes J, Pappas J, Elci O, McCague S, et al. Efficacy and safety of voretigene neparvovec (AAV2-hRPE65v2) in patients with RPE65-mediated inherited retinal dystrophy: a randomised, controlled, open-label, phase 3 trial. Lancet. 2017;390(10097):849-60. doi:10.1016/S0140-6736(17)31868-8.

4. Bennett J, Wellman J, Marshall KA, McCague S, Ashtari M, DiStefano-Pappas J, Elci OU, Chung DC, Sun J, Wright JF, et al. Safety and durability of effect of contralateral-eye administration of AAV2 gene therapy in patients with childhood-onset

5. Drack AV, Johnston R, Stone EM. Which Leber congenital amaurosis patients are eligible for gene therapy trials? J Aapos. 2009;13(5):463–65. doi:10.1016/j.jaapos.2009.08.006.

 

INFORMAÇÃO DO AUTORA

Fonte de financiamento: Declaram não haver

Conflitos de interesse: Declaram não haver


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