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Casos Clínicos Discutidos

Hemorragia retiniana em paciente com diagnóstico recente de COVID-19

Retinal hemorrhage in a patient with a recent diagnosis of COVID-19

Júlia Spolti1; Eduarda Tanus Stefani1; Luana Carbonera Araldi1; Rafael Diego Signor1; João Paulo André Aragon Almanza1; Cesar Gomes da Silveira2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2022.0022

RESUMO

As manifestações oftalmológicas decorrentes da infecção pelo SARS-CoV-2 estão sendo estudadas no meio científico, entretanto, o conhecimento acerca das afecções relacionadas ao segmento ocular posterior ainda é escasso. Neste trabalho relatamos uma paciente jovem com queixa visual após infecção recente por COVID-19, evidenciando importantes hemorragias retinianas. O uso de bevacizumab foi o tratamento escolhido, levando à melhora do quadro. Destacamos, então, a importância do monitoramento fundoscópico em pacientes pós-COVID 19 para avaliação dos padrões circulatórios sistêmicos de forma não invasiva.

Palavras-chave: COVID-19; Hemorragia Retiniana; Infecção pelo SARS-CoV-2.

ABSTRACT

The ophthalmological manifestations resulting from SARS-CoV-2 infection have been documented in the scientific community, but the knowledge about the related affections to the posterior ocular segment is still scarce. In this study, we report a young patient with visual complaint after a recent COVID-19 infection, showing important retinal hemorrhages and bevacizumab was the treatment of choice, leading to clinical improvement. We highlight the importance of fundoscopic monitoring in post-COVID-19 patients for non-invasive assessment of systemic circulatory patterns.

Keywords: COVID-19, Retinal hemorrhage; SARS-CoV-2 infection.

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019 foram diagnosticados os primeiros casos de pneumonia por SARS-CoV-2 em Wuhan, na China. As principais manifestações clínicas englobam grande variabilidade de sinais e sintomas clínicos, e alguns estudos incluem achados oftalmológicos1,2. Manifestações oculares causadas pela COVID-19 são incomuns, com prevalência estimada de 4% ou menos3. As alterações mais frequentes são olho seco, visão borrada, sensação de corpo estranho4, conjuntivite, epífora, hiperemia conjuntival e quemose2.

As apresentações dessa doença, no segmento posterior do olho, apontam para lesões inespecíficas, como bandas hiperreflectivas no nível das células ganglionares5. Há, também, relatos de oclusões venosas da retina e edema macular6. Neste relato, apresenta-se um caso presuntivo a oclusão de veia retiniana em um curto espaço de tempo, após a infecção por COVID-196,7.

 

RELATO DE CASO

Em setembro de 2020, paciente feminina, 32 anos, procura atendimento devido ao aparecimento de “manchas” escuras no olho esquerdo (OE), há aproximadamente 3 dias. Teve infecção pouco sintomática por COVID-19, um mês antes dos sintomas visuais, diagnosticado por teste molecular através de técnica de PCR (reação de polimerase em cadeia), sem lesões em tomografia de tórax e testes sanguíneos normais, sem sinais de coagulopatia. Na história clínica não apresentava comorbidades, negava histórico de trauma, tabagismo ou uso de quaisquer medicamentos com risco para evento tromboembólico. Não houve necessidade de internação hospitalar pela doença.

Ao exame apresentou acuidade visual com correção (AV) de 20/20 em olho direito (OD) e 20/100 em OE. Exame de biomicroscopia dentro dos padrões de normalidade, sem reação de câmara anterior e pressão intraocular de 10 mmHg em ambos os olhos (AO). Ao exame de fundo de olho, observou-se escavação aumentada e assimétrica no OD. No OE apresentou sangramento pré-retiniano e vítreo, perfazendo arcada superior e inferior da retina, proximal ao disco, com vitreíte. Apresentou também edema de disco óptico. Realizou OCT (tomografia de coerência óptica) macular e de disco óptico em AO (Figuras 1 e 2) no mesmo dia, com disco óptico edemaciado, sangramento pré-retiniano em arcada superior e inferior proximal ao disco, e sangramentos pontuais em arcadas terminais, com ausência de edema macular. Sob a hipótese diagnóstica de hemioclusão venosa, foi instituído tratamento com bevacizumab (Avastin; Genentech Inc., San Francisco, CA) 1,5 mg, visando reduzir a vasculite e a angiogênese patológica, uma vez que até então não havia sido estabelecido protocolo para esse tipo de quadro. No retorno, em uma semana, a paciente referiu melhora, e a OCT demonstrou bastante diminuição da área de extensão do sangramento, com melhora da acuidade visual, restabelecendo a mesma do período pré-diagnóstico do evento retiniano apresentado: 20/20 OD e 20/60 OE (Figuras 3 e 4). Cabe frisar que a melhor acuidade da paciente, nesse olho, desde 2018 era 20/60, devido à ambliopia em OE.

 


Figura 1. A) Retinografia e OCT OD de mácula evidenciando aspecto retiniano sem alterações importantes. B) Retinografía e OCT de mácula OE evidenciado área de sangramento vítreo e ausência de edema macular.

 


Figura 2. Retinografia e OCT OD evidenciando aspecto hemorrágico, e edema de disco.

 


Figura 3. Retinografia e OCT OD evidenciando aspecto macular 7 dias depois do anti-VEGF. Observa-se ausência de edema macular.

 


Figura 4. Retinografia e OCT OD evidenciando aspecto do disco 7 dias depois do anti-VEGF. Observa-se ausência de edema de disco.

Um mês após o diagnóstico observou-se melhora no OE, não havendo mais hemorragia, e visão 20/60, com demais padrões de exame oftalmológicos preservados, dentro da normalidade. A acuidade visual se manteve 20/20 no OD.

 

DISCUSSÃO

A COVID-19 é caracterizada principalmente por sintomas de tosse, febre, dispneia e quadro de pneumonia1, e pode estar relacionada a outros desfechos clínicos ainda não bem elucidados na literatura, como o caso da paciente relatada nesse estudo. Pouco se sabe a respeito do acometimento oftalmológico, em especial à lesões identificadas na retina, embora já existam relatos de hemorragias pontuais e oclusão de veia central retiniana em associação com diagnóstico de COVID-198,9. Em nosso relato, observamos hemorragia proximal ao disco óptico e edema de disco óptico.

De acordo com a literatura atual essas alterações apresentadas são características de oclusão venosa da retina. Na maior parte dos casos essa condição é encontrada em pessoas acima de 40 anos, e mais frequentemente em idosos acima de 60 anos10. É caracterizada por perda de visão unilateral após ingurgitamento e dilatação das veias retinianas, seguido de hemorragias retinianas e áreas de isquemia10. Observa-se hemorragias desde a cabeça do nervo óptico até a periferia da retina; hemorragias em chama de vela, que são mais superficiais; e manchas algodonosas, que representam isquemia. Menos frequentemente o edema macular e do nervo óptico estão presentes11.

Atualmente, sugere-se que a infecção por COVID-19 possa predispor a eventos trombóticos12. Estudos já trouxeram a hipótese de que o envolvimento da microvasculatura da retina, visto em pacientes com COVID-19, possa ser decorrente da doença e consequentemente levar à manifestações oftalmológicas importantes, com potencial risco de complicações vasculares retinianas8,9,13,14.

É sabido que o envolvimento da microvasculatura pode gerar doenças oculares devido ao fato de que a circulação retiniana é um sistema arterial terminal14. Contudo, mecanismos que expliquem o dano vascular na doença COVID-19 ainda não são bem entendidos, mas duas principais hipóteses são estudadas. Primeiro um estado de pseudovasculite como resultado de uma infiltração viral nas células endoteliais15. Segundo uma condição hipercoagulável caracterizada por uma coagulação intravascular disseminada16,17.

Essas características apresentadas, tornam plausível a correlação entre a infecção COVID-19 e as manifestações retinianas encontradas no presente caso, de acordo com a literatura8,9,13,14.

Os imunobiológicos estão sendo usados em complicações da COVID-19, não tendo uma atuação direta na causa (vírus), ou no estado de hipercoagulabilidade, mas sim na resposta do organismo frente à infecção, tais como a vasculite, a angiogênese patológica e o aumento dos níveis de citocinas, reduzindo os escapes, edema, hemorragias e fenômenos neovasculares25,26.

O tratamento proposto visou preservar o espaço sub-retiniano dos danos causados pelas hemorragias e consequentes edemas insidiosos ou súbitos, por isso, utilizou-se anti-VEGF com atenção à vasculite e a angiogênese patológica, reduzindo os escapes, edema, complexos inflamatórios, hemorragias e fenômenos neovasculares6,8,26.

Existem evidências de acometimento vascular retiniano em casos de infecção por COVID-19, incluindo eventos pós-vacina, uma vez que os eventos trombóticos sabidamente estão envolvidos na fisiopatologia da doença27. Os achados oftalmológicos nesse caso, coincidem com a maioria dos estudos atuais, porém, nos chama atenção a presença de hemorragia vítrea dentro de um curto espaço de tempo pós-infecção, sugerindo depósitos de imunocomplexos causando oclusão dos vasos retinianos6,28,29.

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INFORMAÇÃO DOS AUTORES

 

 

 

 

 

 

Financiamento: Declaram não haver

Conflitos de Interesse: Declaram não haver

Recebido em: 12 de Julho de 2022.
Aceito em: 11 de Outubro de 2022.


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