Celso Marcelo Cunha1; Gilmar Jorge de Oliveira Júnior2; Giovanna Marchezine3; Miguel José Calix Netto4; Jessica Teixeira Cunha3; Julia Schmidt Dal Berto4; Matheus Bitencourt Novaes3
DOI: 10.17545/eOftalmo/2022.0020
RESUMO
OBJETIVO: Propôs-se desenvolver uma fórmula baseada na ceratometria corneana e diâmetro anteroposterior do globo ocular para estimar a refração esférica objetiva, ou poder esférico estimado.
MÉTODOS: Estudo retrospectivo, transversal e observacional, selecionou prontuários de 150 pacientes míopes, consecutivos, atendidos no Oftalmocenter Santa Rosa – Cuiabá – MT, entre o período de 2017 a 2019. Coletou-se dados da idade, sexo, acuidade visual, refração com cicloplegia, e resultados da ceratometria e diâmetro anteroposterior. Utilizou-se a regressão linear múltipla para determinar os possíveis modelos.
RESULTADOS: Dos 150 prontuários, 100 olhos direitos continham todos os critérios de inclusão. A idade média foi de 17 ± 6,2 anos, sendo 49 do sexo masculino. A média e o DP da miopia, astigmatismo, K1, K2 e diâmetro anteroposterior foram de -4,42 ± 2,06 D, 0,57 ± 0,86 DC, 44,14 ± 1,09, 44,9 7 ±1,38 D, e 25,00 ± 1,19 mm, respectivamente. A fórmula deduzida foi: poder esférico estimado = 63,7584 - 1,6647 x diâmetro anteroposterior - 0,6018 x K1. O coeficiente de determinação ajustado entre a refração objetiva e a poder esférico estimado foi de 0,75.
CONCLUSÃO: A fórmula apontou alto índice de concordância com a refração dessa população. A fórmula deduzida deverá ser estudada na refração subjetiva dos pacientes com astigmatismo irregular, devendo-se sua eficácia ser comprovada em estudos subsequentes nesta população.
Palavras-chave: Refração ocular; Astigmatismo; Acuidade visual; Ceratocone; Ceratometria.
ABSTRACT
PURPOSE: It was proposed in this study to develop a new formula based on corneal keratometry and axial length of ocular globe to estimate the objective refraction or estimated spherical power.
METHODS: Retrospective and cross-sectional study in which were selected medical records from 150 myopic patients, consecutive, attended at the Oftalmocenter Santa Rosa, Cuiabá, MT, between 2017 and 2019. Collected from these records were the age, sex, visual acuity, cycloplegic refraction, and the results from corneal topography and optic biometric. It was applied the multiple linear regression test to determine the possible models for the development of proposed formula.
RESULTS: Among the 150 medical records, 100 right eyes had all criteria and were included in this study. The mean age of population studied was 17 ± 6.2 years, of which 49 were males. The average and the SD of myopia, astigmatism, K1, K2 and axial length were -4.42 ± 2.06 D, 0.57 ± 0.86 D; 44.14 ± 1.09 D, 44.97 ± 1.38 D, e 25.00 ± 1.19 mm, respectively. The formula was: estimated spherical power = 63.7584 – 1.6647 x axial length - 0.6018 x K1. The coefficient of adjusted determination between the objective refraction with cycloplegia and estimated spherical power was 0.75.
CONCLUSION: The formula demonstrated to possess high level of agreement with refraction in this population. The formula may be studied in subjective refraction in patients with irregular astigmatism and this hypothesis must be confirmed in subsequent studies in the population with keratoconus.
Keywords: Ocular refraction; Astigmatism; Visual acuity; Keratoconus; Keratometry.
INTRODUÇÃO
Encontrar a melhor refração no astigmatismo irregular (AI) constitui um dos maiores desafios na refratometria. O ceratocone é uma doença corneana bilateral, evolutiva, não inflamatória, e é a causa mais frequente de AI1. Os AIs podem levar a extrema dificuldade técnica na refração objetiva, pelos clássicos reflexos em tesoura da esquiascopia, e pela pouca reprodutibilidade nos resultados dos autorrefratores, tem conduzido a refração subjetiva nesses casos de tempo prolongado2. O emprego da regra de GASSET foi proposta há várias décadas, levando apenas em consideração os valores de ceratometria mínima e máxima (K1 e K2) para sugerir a refração subjetiva inicial esférica e cilíndrica3.
Na determinação do poder esférico ocular, três fatores são importantes: curvatura corneana anterior, poder do cristalino, diâmetro anteroposterior do globo ocular (DAP)4. Nos pacientes com ceratocone, a tendência natural para encontrar-se a refração esférica miópica deve-se, principalmente, ao aumento da curvatura corneana2.
Nessa perspectiva, propôs-se avaliar, retrospectivamente, prontuários de pacientes com miopia, para se obter dados e desenvolver uma nova fórmula para a estimativa do poder esférico, considerando o valor ceratométrico e o DAP do globo ocular.
MÉTODOS
Este estudo, do tipo transversal, retrospectivo, observacional, selecionou 150 prontuários de pacientes do Oftalmocenter Santa Rosa Ltda, com diagnóstico de miopia, que realizaram os exames oculares relacionados a esta pesquisa, de forma sequencial, entre janeiro de 2017 e dezembro de 2019.
Incluíram-se pacientes de ambos os sexos, com refração estática entre - 9,00 e -1,00DE, presença ou não de astigmatismo, quando presente, entre 0,25 e 3,00 DC, sempre topograficamente regular, conforme os critérios padronizados por Maeda and Klyce, em 19945. Excluiu-se os pacientes menores de 10 anos e maiores de 35 anos, com dados incompletos, com anomalias oculares, que tiveram alguma cirurgia ocular prévia, déficit mental ou síndromes genéticas, ou que não colaboraram aos exames registrados.
Registrou-se a idade, o sexo, a acuidade visual, a refração sob cicloplegia (RCC), as ceratometrias topográficas (K1 e K2), e o DAP (somente dos olhos direitos), das fichas selecionadas, que continham todos os critérios de inclusão e não tinham os critérios de exclusão.
As análises estatísticas foram realizadas com auxílio do programa estatístico SPSS software (version 22.0; IBM, Armonk, New York, USA), e o Excel 2016 (Office 2016; Microsoft Corporation, Redmond, Washington, USA). A descrição dos dados deu-se por meio de gráficos, tabelas e estatísticas descritivas.
Para o desenvolvimento da fórmula proposta, utilizou-se a regressão linear múltipla para determinar os possíveis modelos6, sendo a significância conjunta das variáveis explicativas verificada pelo teste F; e a significância individual para cada variável do modelo, pelo teste t. Na sequência, após a determinação dos modelos, verificaram-se os pressupostos por meio dos testes de Kolmogorov-Smirnov (normalidade), Breusch-Pagan (homogeneidade) e Durbin-Watson (independência), todos eles utilizando um nível de significância de 5%.
Após o desenvolvimento da fórmula (escolha do modelo de regressão), comparou-se os valores miópicos encontrados na RCC com os valores estimados pela fórmula proposta.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UNIVAG - MT, com CAAE: 40989720.2.0000.5692, atendendo assim todas às prerrogativas éticas da resolução no 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
RESULTADOS
Cem prontuários atendiam aos critérios de seleção. A média de idade da população estudada foi de 17 ± 6,2 anos, com variedade entre 10 e 35 anos, sendo 49 (49%) do sexo masculino. A média, DP e variedade da miopia, astigmatismo, K1, K2 e DAP foi de -4,42 ± 2,06, -1 e -9 D; 0,57 ± 0,86, 0 e 3,25 DC; 44,14 ± 1,09, 43 e 47,7 D; 44,97 ± 1,38, 43 e 48,90 D e 25,00 ± 1,19, 22,26 e 27,92 mm, respectivamente.
A fórmula de melhor aproximação da RCC para o poder esférico estimado (PEE) deduzida foi:
onde se obteve um coeficiente de determinação ajustado (R2 ajustado = 0,7543).
Os valores determinados para RCC e os estimados para todos os participantes por meio da fórmula de PEE, encontram-se na Figura 1 e suas estatísticas descritivas, na Tabela 1.
DISCUSSÃO
Uma das origens da clássica frase dos grandes mestres da refratometria, “refração ocular é uma arte”, vem da refração nos astigmatismos irregulares. Alguns pacientes com ceratocone tem altos poderes miópicos e astigmáticos e não suportam o uso prolongado de suas lentes de contato, desse modo, sendo fundamental o uso de óculos como uma alternativa, em uma parte do dia, para permitir executar as atividades diárias7. Como iniciativa de estimar rapidamente um poder esférico para se iniciar a refração subjetiva nesses casos, usou-se os valores de K1 e DAP, que podem ser obtidos pela ceratometria corneana e biometria ultrassônica de baixo custo, o que poderia ajudar nesses casos difíceis de refração. Os valores iniciais do astigmatismo que podem existir em casos de AI devem ser orientados de acordo com a literatura apropriada.
Nas últimas décadas, surgiram estudos demonstrando bons resultados com uso de aparelhos com wavefront para fornecer a refração objetiva nesses casos, no entanto esses estudos não foram randomizados ou duplo-cegos, além do que, o alto custo dessa tecnologia afasta essa abordagem do dia a dia dos consultórios oftalmológicos no Brasil8,9.
Vários estudos têm correlacionado dados biométricos com a refração ocular. A curvatura corneana tem baixa correlação com esse fato. A maior correlação é encontrada entre o DAP e a refração ocular10,11. Logo, pode-se esperar que a fórmula de Gasset, anteriormente proposta para a dedução do grau esférico nos AIs seja pouco reprodutível para a estimativa do poder esférico. O DAP já foi outrora empregado para estimar-se o valor da PEE; neste estudo foi desenvolvida uma fórmula para uma população com glaucoma congênito, sendo estudado uma população entre 0,5 a 33 anos, mas com média de 11,06 anos, o que demonstra grande numero de pacientes abaixo dos 10 anos de idade. Nessa faixa etária, encontra-se maior poder no cristalino, o que leva a maiores poderes miópicos, além de olhos com alto valor de DAP pelo buftalmo característico12. O diagnóstico do ceratocone costuma ser em idade média maior que deste estudo. A idade da população selecionada para este estudo buscou representar a faixa etária relacionada com o diagnóstico do ceratocone. Assim sendo, a população com faixa etária abaixo dos 10 anos pode apresentar valores da PEE hipocorrigidos.
Outro dado biométrico importante que ajudaria a refinar a fórmula seria o poder do cristalino, porém sua medida é realizada com maior precisão por biometria óptica, da qual, com posse dos dados da profundidade da câmara anterior, da espessura do cristalino, da ceratometria corneana, do DAP e da refração do paciente, deduz-se, através da fórmula de Bennett (ou com a fórmula adaptada por Rozema), o poder do cristalino13,14. Evidencia-se que, no caso deste estudo, não se propôs determinar antes a refração ocular, inviabilizando esse cálculo.
Esta fórmula deduzida permite auxiliar no encontro da melhor refração objetiva inicial em pacientes com suaves opacidades de meios que não permitam uma correta esquiascopia e que o autorrefrator não forneça resultados fidedignos.
Este estudo apresenta algumas limitações, tais como não ter empregado a fórmula em córneas irregulares (será a fase dois deste estudo) e não se ter selecionado apenas curvaturas coreanas maiores que 46 D, comumente encontrada na população com ceratocone.
Com a nova fórmula demonstrada, encontrou-se alto índice de concordância com a RCC dessa população. O uso da fórmula deduzida pode simplificar o início da refração subjetiva em pacientes com suaves opacidades de meios, e, no futuro, talvez conseguir reduzir o tempo de refração subjetiva nos pacientes com astigmatismo muito irregular. Novos estudos randomizados e mascarados na população com ceratocone poderão comprovar essas afirmações.
REFERÊNCIAS
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INFORMAÇÃO DOS AUTORES
Financiamento: Declaram não haver
Aprovado pelo seguinte comité de ética em pesquisa: Centro universitário da Várzea Grande – UNIVAG (CAAE: 40989720.2.0000.5692).
Conflitos de Interesse: Declaram não haver
Recebido em:
7 de Agosto de 2022.
Aceito em:
12 de Outubro de 2022.