Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

1152

Visualizações

 


Opinião de Especialistas

Tratamento cirúrgico dos estrabismos horizontais

Surgical treatment of horizontal strabismus

Christine Mae Morello Abbud1; Rosália Maria Simões Antunes-Foschini2; Sidney Júlio de Faria e Sousa3

DOI: 10.17545/e-oftalmo.cbo/2016.69

RESUMO

Este artigo apresenta a experiência dos seus autores, relativas aos princípios básicos que os norteiam no tratamento cirúrgico dos estrabismos horizontais. Trata de assuntos como a classificação cirúrgica do estrabismo, condições mínimas para a indicação cirúrgica, idade cirúrgica ideal, princípios de atuação sobre a musculatura extraocular, resposta muscular frente aos encurtamentos e recuos e outros aspectos relevantes para o sucesso terapêutico desse tipo de distúrbio oculomotor.

Palavras-chave: Estrabismo; Cirurgia; Ortóptica; Esotropia; Exotropia

ABSTRACT

This article presents the experience of its authors regarding the basic principles that guide them in the surgical treatment of horizontal strabismus. It addresses subjects such as the surgical classification of strabismus, minimal conditions for surgical indication, ideal age for surgery, principles of operating on the extraocular musculature, muscle response to shortening and recession, and other aspects relevant to a successful treatment of this type of oculomotor disorders.

Keywords: Strabismus; Surgery; Orthoptics; Esotropia; Exotropia

INTRODUÇÃO

O estrabismo é uma enfermidade ocular que, além do problema estético, frequentemente se associa a uma deficiência visual do olho desviado denominada ambliopia estrábica. Ambas condições tendem a limitar o desempenho emocional e profissional da pessoa afetada. Uma vez que na maioria dos casos o tratamento envolve cirurgia e porque o assunto tem sido cada vez menos aludido na literatura, o objetivo desta publicação é o de fornecer a nossa experiência sobre os princípios básicos que nos norteiam no tratamento cirúrgico dos estrabismos horizontais. Os desvios verticais são menos frequentes e de tratamento mais complexo. Por isso, não serão abordados neste artigo. A esperança é que esta publicação incentive os oftalmologistas a voltarem a se interessar pela oculomotricidade, especialmente nas regiões onde não houver especialistas disponíveis.

Classificação cirúrgica do estrabismo

O tratamento cirúrgico do estrabismo tem por objetivo corrigir o desalinhamento ocular, mas os resultados dependem da potencialidade de uso da visão binocular. Em função disso, as cirurgias são classificadas como estéticas ou funcionais. As primeiras são aquelas para as quais não se espera cooperação binocular entre os olhos. São intervenções puramente cosméticas. Estão associadas às ambliopias irreversíveis e aos defeitos permanentes de captação e condução do estímulo luminoso ao córtex visual. As segundas são aquelas em que se espera alguma forma de colaboração binocular no pós-operatório.

Nos estrabismos estéticos, o realinhamento dos olhos depende exclusivamente da cirurgia. Qualquer desvio residual, por menor que seja, não será compensado porque não existe colaboração binocular. Como os músculos extraoculares não possuem proprioreceptores, o único estímulo para o alinhamento ocular é a possibilidade da formação de uma impressão visual única, a partir das imagens fornecidas por ambos os olhos. Não havendo essa alternativa, não há motivo para que os desvios residuais da cirurgia sejam neutralizados pelos movimentos fusionais. Não há inclusive motivo para que o resultado cirúrgico permaneça estável. Tudo fica na dependência do equilíbrio de forças entre os músculos operados. Se esse equilíbrio pender para um lado, o olho fatalmente acabará se desviando para esse lado. Nos estrabismos funcionais, a fusão tende a compensar os pequenos desvios residuais e a manter os olhos permanentemente alinhados. Em alguns casos, permanece um microestrabismo que, em função da diminuta magnitude, admite fusão perifoveal. Essa adaptação sensorial, apesar de não evitar a ambliopia, mantém a estabilidade do resultado cirúrgico.

Condições mínimas para a indicação cirúrgica

Para que se indique cirurgia em um paciente estrábico, é necessário que certos requisitos tenham sido preenchidos. Esses, por sua vez, variam com o fato do estrabismo ser estético ou funcional. No estético, a cirurgia só deve ser efetuada após a obtenção de medidas confiáveis e estáveis do desvio e de diagnóstico completo do quadro motor. No funcional, além dos requisitos anteriores, é necessário que as visões de ambos os olhos estejam igualadas e que o desvio seja alternante, sem preferência de fixação. As visões idênticas facilitam a fusão bifoveal que, por sua vez, estabiliza o resultado cirúrgico. Entretanto, há casos em que não se consegue alternância, mesmo com as visões igualadas. Nesses casos, a cirurgia é feita sem esse pré-requisito.

Importância do tratamento oclusivo pré-cirúrgico

A posição ocular é ditada pelo equilíbrio das forças ativas dos músculos extraoculares e pelas forças passivas visco-elásticas dos seus tendões, fáscias e ligamentos.1 No estrabismo, na medida em que um olho se torna mais preferido, o outro passa mais tempo desviado. A posição viciosa do olho desviado favorece o encurtamento das suas estruturas colágenas perioculares. Isso não só restringe a movimentação do olho, como consolida o desvio. A oclusão do olho fixador combate tanto a ambliopia como a contratura tecidual. A alternância de desvio, induzida pela oclusão, é importante porque indica que as visões se igualaram e que as restrições mecânicas foram desfeitas. A oclusão deve ser aplicada diretamente sobre a pálpebra, diariamente, durante todo o período de vigília. O regime oclusivo é baseado na idade do paciente, podendo ser alterado ao longo do tratamento. Até um ano de idade, ocluímos 1 dia o olho fixador (OF)/ 1 dia o olho amblíope (OA); aos 2 anos, 2 dias OF/ 1 dia OA e assim por diante até os 6 anos de idade, quando se oclui 6 dias OF/ 1 dia OA. Dessa idade em diante, a oclusão tende a ser feita exclusivamente no olho fixador até a cura da ambliopia. Esse esquema é modificado em função do comportamento visual, de ambos os olhos, durante o tratamento.

Quando o estrabismo é estético, não faz sentido penalizar o paciente com a oclusão do olho fixador porque este é o único com o qual ele enxerga. Procura-se compensar a falta do tratamento oclusivo com a liberação cirúrgica das contraturas mecânicas, com especial atenção à conjuntiva. Não é incomum ficar uma área de esclera nua no local onde a conjuntiva foi recuada.

Idade cirúrgica

Nas endotropias funcionais, a cirurgia deve ser realizada o mais breve possível, desde que satisfeitas as exigências mínimas. Isto geralmente ocorre entre um e dois anos de idade. Nas exotropias o ideal é retardar a cirurgia ao máximo, recorrendo a todas as possibilidades do tratamento ortóptico, como exercícios antissupressivos, oclusão parcial do olho dominante e lentes negativas. Por algum motivo, ainda não bem esclarecido, os exodesvios tendem a ser menos ambliopizantes que os endodesvios. Como consequência, uma cirurgia que transforme uma exotropia em endotropia é tão mais indesejável quando mais jovem for o paciente. Se o estrabismo é estético a oportunidade cirúrgica passa a ser de fórum familiar, lembrando sempre que os resultados tendem a ser instáveis.

Que olho operar?

Quando a cirurgia envolve ambos os olhos, o ideal é que a maior parte dela seja executada no olho dominante. Aparentemente, isso fornece resultados mais previsíveis e estáveis. A lógica é de que músculos sadios e sob rigoroso controle cerebral respondem melhor à cirurgia. Se o procedimento for realizado em apenas um dos olhos, esse raciocínio só se aplica aos estrabismos funcionais. Nos estéticos, o benefício não justifica o risco de se atuar no olho de melhor visão.

Desestabilizadores dos resultados cirúrgicos

Existem condições que aumentam a imprevisibilidade dos resultados cirúrgicos dos estrabismos horizontais: baixa visão, contraturas mecânicas, variações em "A" ou "V", desvios verticais e paralisias musculares. As duas primeiras já foram abordadas. As duas seguintes desestabilizam o controle fusional horizontal. As paralisias respondem mal ao encurtamento muscular, uma vez que a tensão visco-elástica induzida é proporcional à massa muscular. Como os músculos mal enervados tem pouca massa os resultados são pobres. No planejamento cirúrgico do estrábico, todos esses fatores devem ser levados em conta.

Anestesia

O ideal é que as cirurgias convencionais de estrabismo sejam feitam com anestesia geral. Nos adultos, quando o procedimento é uniocular, a anestesia pode ser peribulbar ou até mesmo tópica, com colírio anestésico. No último caso é possível aplicar a técnica das suturas reajustáveis, monitorando-se o alinhamento ocular com o cover test e uma luz de fixação, na própria mesa cirúrgica. Para evitar dor, os músculos devem ser tracionados lenta e progressivamente.

Princípios de atuação sobre os músculos extraoculares

A atuação sobre os músculos extraoculares segue alguns princípios que facilitam o planejamento cirúrgico e tornam o procedimento menos arriscado. Entretanto, não devem ser interpretados como normas pétreas. Esses princípios são:

1. Ressecções musculares puras tendem a perder o efeito com o tempo.

2. Recuos musculares tendem a ser mais efetivos que as ressecções.

3. O duplo recuo dos retos mediais tende a corrigir mais para perto do que para longe.

4. O duplo recuo dos retos laterais tende a corrigir mais para longe do que para perto.

5. Recuos do reto medial, menores que 3 mm, tendem a ser ineficazes.

6. Recuos do reto lateral, menores que 5 mm, tendem a ser ineficazes.

7. Ressecções menores que 5 mm tendem a ser ineficazes.

8. Não se recua mais que 5 mm os retos mediais (para os não especialistas em estrabismo).

9. Não se recua mais que 9 mm os retos laterais (para os não especialista em estrabismo).

10. Não se recua mais que 5 mm os retos verticais (para os não especialista em estrabismo).

11. Não se resseca mais que 10 mm dos retos horizontais.

12. Não se resseca mais que 6 mm dos retos verticais.

13. Nunca se atua sobre mais de três músculos retos em um mesmo olho, numa mesma cirurgia.

14. Acima de 50 anos, não se deve atuar em mais de dois retos num mesmo olho, numa mesma cirurgia.

Cálculos cirúrgicos nos estrabismos horizontais

As três cirurgias mais usadas no tratamento dos estrabismos horizontais são: recuo do músculo agonista, encurtamento do antagonista (ressecção ou pregueamento) e transposição vertical das inserções musculares. Essas cirurgias podem ser feitas isoladamente ou em combinações. A resposta do desvio a esses procedimentos depende da técnica de cada cirurgião, particularmente de como ele mede as distâncias durante o ato cirúrgico. A seguir apresentamos alguns números que devem ser interpretados apenas como referência grosseira de cálculo. Eles resultam de um estudo retrospectivo, feito em nosso serviço há 30 anos, em uma amostra de 400 cirurgias, com igual número de endotropias e exotropias. Desse estudo tiramos os seguintes valores, com os ângulos de desvio expressos em dioptrias prismáticas (DP):

1. O recuo isolado do músculo reto medial corrige 3,0 DP por mm.

2. A ressecção isolada do músculo reto lateral corrige 2,0 DP por mm.

3. O recuo isolado do músculo reto lateral corrige 1,5 DP por mm.

4. A ressecção isolada do músculo reto medial corrige 2,0 DP por mm.

5. Recuo do reto medial + ressecção do reto lateral do mesmo olho tem efeito aditivo de 33%.

6. Recuo do reto lateral + ressecção do reto medial do mesmo olho tem efeito aditivo de 25%.

Deslocamentos verticais dos retos horizontais

Nas cirurgias sobre os retos horizontais, as inserções musculares, após o recuo ou a ressecção, podem ser suturadas em alinhamento com as inserções originais ou deslocadas verticalmente. Os deslocamentos verticais servem para corrigir desvios verticais associados ou variações em "A" ou "V".

Deslocando os retos medial e lateral para cima, eleva-se o olho; deslocando-os para baixo, abaixa-se o olho. Os deslocamentos variam de 5 a 10 mm. Deslocando-se ambos os retos mediais para o ápice da variação em "A" corrige-se o "A"; deslocando-se ambos os retos mediais para o ápice da variação em "V" corrige-se o "V". Deslocando-se ambos os retos laterais para a base da variação em "A" corrige-se o "A"; deslocando-se ambos os retos laterais para a base da variação em "V" corrige-se o "V". A maioria dos deslocamentos verticais que fazemos é de 6 mm.

Os deslocamentos de inserção são geralmente indicados para os estrabismos estéticos. Nos funcionais, o especialista em oculomotricidade determina os músculos diretamente responsáveis pelos desvios verticais ou pelas variações alfabéticas e atua diretamente sobre eles.

Importância cirúrgica da conjuntiva

Independentemente do tipo do estrabismo, onde a conjuntiva estiver encolhida ela deverá ser recuada, deixando a área de esclera nua. O encurtamento da conjuntiva se manifesta por limitação do movimento ocular no campo oposto ao da contração tecidual. Ela é testada, durante a cirurgia, com uma pinça presa ao limbo na posição diametralmente oposta ao da rotação que se deseja impor ao olho. O teste é considerado positivo quando se detecta restrição mecânica à rotação passiva do olho. Deve-se dar particular atenção à sutura conjuntival, para que não gere cicatrizes muito evidentes. O paciente tende a avaliar o sucesso do tratamento não pela função, mas pela estética.

Resultado Cirúrgico

A cirurgia pode resultar em alinhamento ocular com fusão bifoveal. Nesse caso basta monitorar a visão até o final do período de maturação visual. Pode resultar em um microestrabismo (≤ 5 DP) com fusão parafoveal. O desvio tende a ser estável, mas pelo fato de ele ainda existir, o olho fixador deve ser ocluido diariamente, em regime de tempo parcial, e a visão monitorada rigorosamente. O resultado pode ser um estrabismo de pequeno angulo (≤ 15 DP), com excelente estética e perfeita alternância de fixação. Nesse caso, deve-se rever a refração, sob cicloplegia,2 na esperança de que uma alteração apropriada no esforço acomodativo venha a diminuir o desvio, facilitando o trabalho da fusão. O principal objetivo será o de manter a visão e a alternância até o final do tratamento. Pode ocorrer que o estrabismo residual seja maior do que 15 DP e portanto evidente. Nessa situação, deve-se preparar o paciente para uma nova cirurgia, respeitando novamente os critérios mínimos de indicação do tratamento cirúrgico, o que pode se estender por mais de um ano. Há uma variedade de possibilidades além das descritas, mas o princípio geral é que, se restou desvio na fase de maturação visual, existe a possibilidade de recidiva da ambliopia e regressão do quadro motor. Se o estrabismo é de prognóstico estético o resultado é julgado pela aparência final.

É importante explicar ao paciente ou aos seus familiares que, mesmo nas melhores condições pré-operatórias, existe a chance de que o resultado desejado só seja conquistado com duas ou até mesmo três cirurgias; que o tratamento do estrabismo funcional só termina após a conclusão da maturação visual, quando a visão se estabiliza; e finalmente, que o desvio pode ressurgir em qualquer período da vida, particularmente se for do tipo estético.

 

REFERÊNCIAS

1. Faria e Sousa SJ. Ocular motility revised. Arq. Bras. Oftalmol. 1987; 50(1):42-46

2. Faria e Sousa SJ. O cloridrato de ciclopentolato. Arq. Bras. Oftalmol. 1982; 45(5):157-160

 

 


Christine Mae Morello Abbud
http://orcid.org/0000-0001-6898-5588

 

 

 

 

Fonte de financiamento: declaram não haver.

Conflito de interesses: declaram não haver.

Recebido em: 2 de Novembro de 2016.
Aceito em: 28 de Novembro de 2016.


© 2024 Todos os Direitos Reservados